Maria Izabel: da vida à cachaça

  • Publicado 4 anos atrás

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A surpreendente história da mulher que aprendeu a destilar cachaça para sustentar a família

Especial Mães e Cachaça

Maria Izabel investiu todo dinheiro que tinha quando comprou o sítio paradisíaco à beira mar, em Paraty (RJ), na década de 80. A mulher que anos mais tarde começaria a produzir cachaça como os antepassados faziam, só queria um pedaço de terra para plantar e ter um cavalo, sonho de infância.

Recém separada do marido, sem dinheiro ou profissão e, na época, com cinco filhas para criar, ela fez de tudo um pouco. Vendeu bananas, bordou, costurou, foi jardineira e até marinheira. Levava turistas em passeios pelas ilhas de Paraty, no barco comprado para o próprio transporte. Não havia estradas para o sítio Santo Antônio naquele tempo.

Do casamento conturbado, aos 17 anos, ouviu uma frase dura do marido, carregada de estereótipos. “Se não fosse por mim, você seria uma cachaceira!”. Mulher de espírito livre, Maria Izabel redefiniu os padrões e quebrou preconceitos. Hoje é uma cachaceira sim. E das melhores, como brinca com as seis filhas: Izabel, Maria, Mabel, Mariza, Maíra e Maia.

Cachaça: herança de família

Com seus quase 70 anos e avó de oito netos, Maria Izabel vem de uma família de mulheres fortes. E “faz parte da paisagem” da baía de Paraty, como costuma dizer, pois se sente integrada à natureza do local. Sua história também se mistura com a da cidade. E seu alambique é ponto certo de parada para quem visita o município de litoral caprichoso, na Serra da Bocaina.

Baia Maria Izabel

O bisavô paterno de Maria Izabel, Francisco Lopes da Costa, foi um importante exportador de cachaça. O avô Samuel foi o primeiro prefeito eleito de Paraty. O pai Paulo do Amaral Costa faleceu jovem, quando ela tinha apenas quatro anos e não pode compartilhar os segredos da produção da família, que data do século 18

“Quando meu pai casou já não se fazia mais cachaça na fazenda onde eu nasci. Se passou alguma coisa para mim foi no DNA. Sei que a cachaça da família era muito boa.”

Maria Izabel é daquelas mulheres que carregam a serenidade no olhar e a simplicidade nos atos. De pé descalços, cabelos longos grisalhos e fala mansa, acredita que tudo tem seu tempo e nada acontece por acaso.

Na infância, foi considerada rebelde pela mãe. Montar cavalo a pêlo e sair sozinha de barco no mar não eram brincadeiras bem vistas para uma menina, há pouco mais de meio século.

E, olha que a mãe, Josephina Gibrail Costa, era uma mulher à frente do seu tempo. Foi a primeira vereadora de Paraty e uma das primeiras mulheres eleitas no país. Para além da relação marcada por atritos, a filha lembra da mãe com admiração.

Mãe é mãe, cachaça é ofício

Ao contrário do que alguns possam pensar, a cachaça nunca foi uma paixão da caiçara. Nem surgiu do desejo de resgatar a tradição da família.  A produção que começou em 1996 veio da determinação dessa mulher que, pelas filhas, não podia parar. Maria Izabel prefere pensar que os caminhos tomados ao longo da vida trouxeram-na até aqui.

Ela estava grávida da filha caçula quando terminou de montar o alambique. A primeira destilação só aconteceu depois da menina completar o segundo aniversário. Maia nasceu com Síndrome de Down.

Na época, a produtora tinha 44 anos e lembra que enfrentou uma depressão.

Hoje, a filha mais nova com 26 anos é a maior companheira e o maior incentivo de Maria Izabel. Ela revela que as seis filhas sempre deram força para que seguisse em frente nos momentos mais difíceis.

“A cachaça é o meu trabalho, o que mais ou menos me mantém, mas não é paixão, é fazer bem feito. Eu gosto do resultado. Se você disser que isso é amor, então eu ponho amor nas coisas que faço.”

As desventuras do canavial

No começo, Maria Izabel não tinha a intenção de produzir a cachaça que leva o próprio nome e se tornaria a mais famosa de Paraty.

“Simplesmente, eu vi um vizinho cortando cana. Fui lá e peguei as pontas. Transportei de canoa para o sítio e plantei sozinha a primeira cana daqui”. Hoje, o canavial ocupa quatro hectares da fazenda, o restante é mata preservada.

A primeira safra foi oferecida para um engenho que trabalhava no sistema de “meia”. Maria Izabel contratou ajudantes para cortar e transportar a carga com burros até o ponto onde veículos pudessem chegar.

Encheu dois caminhões, mas na troca recebeu apenas 40 litros de cachaça com teor alcoólico a 50%. A decepção foi ainda maior, pois um dos burros fugiu para o asfalto e foi atropelado. “Só me deu problema e prejuízo, foi uma desventura”, completa. 

A construção do alambique da cachaça Maria Izabel

Como já tinha a cana, Maria Izabel resolveu montar o próprio engenho. O dinheiro da venda de algumas propriedades não dava para investir na construção de uma estrada, nem levar energia elétrica para o sítio.

Fachada no alambique da Maria Izabel

Assim, o alambique foi construído de forma a aproveitar todo o declive do terreno. O processo desde a fermentação do mosto à destilação da cachaça é feito por gravidade e Maria Izabel cuida de tudo pessoalmente.

Autodidata, ela nunca sentou no banco de uma escola para estudar sobre cachaça. Mas, teve um mestre que lembra com carinho, Pedro Peroca, produtor da melhor cachaça de Paraty, na década de 60.

O alambiqueiro aposentado ensinou para a amiga como preparar o fermento de milho, separar o coração (a parte nobre) e ajudou Maria Izabel a desenvolver a sensibilidade para avaliar visual e sensorialmente a bebida.

Qualidade e não quantidade

A produtora se orgulha em produzir a cachaça com o menor índice de acidez da região. Forte, mas suave: assim como ela. Para manter a qualidade a cachaça Maria Izabel é feita somente com a cana plantada no próprio sítio.

Isso evita a formação da acidez que é gerada no tempo entre o corte e a moagem. E também garante a ausência de agrotóxicos ou defensivos agrícolas. “Vai contra os meus princípios”, comenta.

Na época da safra da cana, a produção da cachaça leva cerca de dois meses, um processo gradual que começa com a preparação do fermento caipira e a limpeza do engenho. “O meu fermento leva quase um mês e nessa multiplicação vou me preparando psicologicamente”.

Quando a destilação se inicia, a produtora acorda às seis da manhã para acender a fornalha. E vê o sol nascer, enquanto toma um chimarrão a espera do pessoal contratado para trazer a cana.  Ela descreve a sensação como um momento em que sente a vida de verdade. 

Dos quatro funcionários fixos do sítio, o mais antigo é quem ajuda a proprietária, quando necessário no alambique, pois sabe destilar. Às vezes as filhas também participam. Maia é a única que ainda mora com a mãe. Mabel vive em outra casa na propriedade e Mariza, que toca a parte administrativa da fazenda, mora no centro histórico de Paraty.

A medida que os dias passam, o cansaço pesa e Maria Izabel agradece pela produção ser pequena. Fala que é bom começar, mas também é bom quando termina.

A bebida só vai para a garrafa depois de repousar por pelo menos um ano em tonéis de madeira. A cachaça é engarrafada conforme a demanda para evitar que os barris fiquem vazios.

O carvalho é reservado para a variedade ouro. O jequitibá guarda a cachaça prata. Tem ainda a reserva especial que só é feita nos anos em que a cana atinge o teor ideal de açúcar.

Em 24 anos, a produção anual nunca ultrapassou 11 mil litros. Apesar das muitas propostas para ampliar a quantidade, Maria Izabel se mantém fiel aos seus princípios. O rótulo é do famoso ilustrador Jeff Fisher e retrata um sonho de Maria Izabel.

“É simples: não penso em fazer coisas grandes, eu gosto das coisas que eu entendo, do tamanho que sou capaz de fazer. Eu acredito nas coisas bem feitas”.

Cachaça homônima: Maria Izabel

Registrar a cachaça com o próprio nome nunca foi a ideia de Maria Izabel. Aliás, ela conta que esse foi um momento bastante constrangedor.

A primeira opção era “Aguardente de cana Santo Antônio”, uma referência ao nome do sítio onde a bebida é produzida: mas todos os santos já estavam registrados, assim como outros nomes em que pensava.

Naquele momento, as pessoas já começavam a pedir pela cachaça da Maria Izabel. “Tem uma Maria Izabel?”, perguntavam.

E de boca a boca, o nome pegou! “Pelo menos não estão falando mal!”,  sente-se aliviada.

Maria Izabel em Paraty

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