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Repor– Opa, bora harmonizar cachaça com chocolate?
– Olha, Felipe… vou ter que pensar muito, mas acho que sim…
– A Páscoa tá aí…
– Com um argumento tão forte, não vejo como recusar…
Assim rumei para a sede do Mapa da Cachaça, no Pacaembu, onde a cachaça enfrentaria o chocolate em monumental contenda. Felipe Jannuzzi, pelo Mapa, forneceu a casa e a cachaça, e a revista Prazeres da Mesa, na pessoa do jornalista Tulio Silva, entrou com o chocolate. Com as bocas, línguas e o justificado bom humor entramos o mixologista Rodolfo Bob e este etilista que vos escreve.
A proposta: juntar chocolates com diferentes teores de cacau com algumas cachaças armazenadas em diferentes madeiras, além de uma branca. E ver no que dá.
O encontro tinha ares experimentais. Mais que tirar julgamentos ou certezas, a ideia era sair dali com perguntas saborosas o suficiente para inspirar outros experimentos, que nos façam avançar. Tudo pelo progresso da ciência. E nossa “ciência” só pode se pautar pelo binômio saber-sabor: o conhecimento que leva a aprofundar o deleite da degustação; o demorar-se no gosto como única maneira de ser transformado pela experiência, sabendo mais do que se sabia antes.
O Felipe fez um breve e fiel relato de nosso passeio exploratório pela mesa do Mapa. Queria acrescentar umas reflexões. Porque, em dado momento, nos vimos em meio a uma polêmica. Afinal, deveríamos seguir uma metodologia única e obrigatória para toda a sessão de harmonização? Caso afirmativo, que tipo de conclusão esperar?
A polêmica se colocou entre duas alternativas. Uma seria impor as mesmas condições para cada harmonização. Deveríamos morder o chocolate, deixá-lo preencher a boca, então sorver a cachaça e atentar a cada sensação produzida, até engolir a mistura e esperar os efeitos se extinguirem. A outra hipótese era a de não ter nenhuma constante no processo, ou seja, deixar o caráter exploratório da proposta correr sem freios.
A primeira hipótese, a de manter as condições de degustação estáveis, torna possível a comparação. A segunda, se não permite comparar, se aproxima da situação real das pessoas quando provam a combinação, cada hora é de um jeito.
Do ponto de vista das conclusões, a primeira deveria apontar para aquelas combinações mais certeiras, que dependem menos de fatores secundários. Já a segunda aponta para um monte de histórias mais compridas, tipo: olha, esse chocolate e essa cachaça são muito intensos, não seria o caso de tomar um café depois? Ou: essa cachaça não combina com esse chocolate, mas sabe que eu gostei, me lembra aquele bombom, o que será que falta?
Naturalmente, aconteceu de a cada prova começarmos mantendo o padrão e divagarmos depois seguindo a intuição ou alguma ideia que surgiu.
Sem menosprezar em nada o primeiro caminho, que sem dúvida é necessário para conhecer melhor a combinação, acabei me descobrindo um fervoroso adepto do segundo. O que me faz vibrar é a possibilidade de brincar livremente com os elementos em jogo: as várias características do alimento e da bebida, as quantidades de cada um, os tipos de copo, as temperaturas… e o que mais se quiser levar em conta.
Descobri que, pra mim, a harmonização é uma arte narrativa. São dois (ou mais) personagens que se encontram e contam uma breve história. Ou melhor, dá pra ser mais preciso: é uma arte dramática, e o seu teatro – talvez o menor teatro do mundo, de um único espectador – é a boca. Considerar o tempo e o espaço, a performance de cada personagem e o que eles têm para contar ao se encontrarem desde que entram até saírem de cena, é o que o harmonizador tem que conceber e propor. É possível que um personagem tenha que entrar em cena antes, fazer um pequeno monólogo, para em seguida ser complementado ou contraposto pelo outro.
Como nas artes, há muito conhecimento técnico a ser mobilizado, mas o fundamento é subjetivo. E o espectador ou espectadora poderá gostar ou não, não são obrigados a nada. A degustação é, por excelência, uma situação de crítica. O degustador poderá gostar um pouco, recusar absolutamente, ou, mesmo com reservas, reconhecer que aquele evento que acontece diante de seus olhos, nariz e boca faz acontecer coisas peculiares que merecem atenção.
Assim é que alimentos que pertencem a um mesmo universo cultural podem ter dificuldade em harmonizar. Digamos que o Bozo e o Capitão América são muito parecidos, mas não vai ser fácil criar a cena em que ambos interagem. Talvez fosse preciso transformar o Bozo num vilão psicopata – mas aí ele já não é o Bozo, é o Coringa – ou fazer este encontro ser algo tão casual a ponto de eles apenas se olharem e se reconhecerem, um simples confronto de presenças, sem outras consequências dramáticas. Mas a primeira possibilidade, de fato, é a evidente constatação do grotesco deste encontro, que pode gerar o riso ou apenas o constrangimento. Tipo hamburguer com milk shake, algo tão frequente quanto bizarro.
Espero que a analogia tenha servido: a harmonização é uma espécie de encenação, e os alimentos que coloco na boca para interagirem em meu paladar são como personagens de uma cena. Está muito abstrato, eu sei, por isso voltemos ao nosso encontro.
A combinação que eu mais gostei foi a de uma Weber Haus Extra Premium – que fica cinco anos em tonéis de carvalho e um ano em tonéis de bálsamo – com um Chocolat du Jour 75% de cacau. Mas não é uma mistura que funciona em qualquer condição, de jeito nenhum. Se confrontados ao mesmo tempo, o chocolate amargo, intenso demais, massacra e finaliza a delicadamente doce Weber Haus. Então fui experimentando os vários tempos desse encontro. Cheguei à dramaturgia da cena.
Entra o chocolate com energia, gritando com fúria, presença viril, masculina. Sua beleza não é sutil, está na totalidade de sua presença, que se impõe sem agredir. O chocolate logo atinge seu pico, mas então nota-se que sorrateiramente uma dúvida se introduz no seu discurso. A intensidade do drama inicial cede, mas ainda vibra no espaço do teatro. O chocolate perde fôlego.
Acendem-se luzes no outro canto do palco para a entrada da cachaça, delicada e bela, muito feminina. Ela não se sente em nada ameaçada pela dureza do confronto, sua força vem de outro lugar. Com palavras sutis e muito bem colocadas, ressignifica todo o trágico destino anunciado pelo chocolate, abre a uma compreensão mais profunda do drama, como se dissesse: o conflito não se resolverá, chocolate, não adianta gritar, mas veja como você, ao meu lado, também é capaz de sutilezas, há ternura sob a sua brutalidade.
É a humanidade que se apresenta: na fragilidade, na dança dos extremos, numa miríade de especiarias que surge do encontro da complexa e sutil Weber Haus com o intenso, mas já atenuado, Chocolat du Jour 75%.
Talvez por estarmos ali, na sede do Mapa da Cachaça, bem de frente para o Estádio do Pacaembu, me ocorreu a mesma cena “reescrita” para o palco do futebol: a jogada começa com uma disputa de bola na intermediária, o segundo-volante Chocolate rouba ainda no seu campo e dispara, os adversários tentam, até com violência, mas nada parece ser capaz de deter o avanço vigoroso em diagonal pelo centro do gramado. A plateia se exalta, Chocolate vai fazer um gol de placa. Quando já se aproxima da área adversária, perde velocidade num drible e um zagueiro o alcança, não há condições de chute. Chocolate então passa a bola para o leve e habilidoso atacante Cachaça, que chega pela meia-esquerda. Com um sutil jogo de corpo, Cachaça desbaratina a zaga, então saca sei-lá-de-onde um lençol que aplica ao derradeiro beque, e vê o gol se abrir à sua frente. A bola parece completar sua parábola em câmera lenta, mas antes de retornar ao solo leva o tapa preciso da chuteira de Cachaça, para ir receber a carícia das redes.
A torcida não sabe se explode ou fica muda. Quem merece a reverência das massas: Chocolate, pela determinação, virilidade e força, ou Cachaça, pela sutileza e plasticidade de sua arte? A essa dúvida poderíamos dar o nome de harmonização.
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