Maurício Ayer

Harmonização com cachaça e chocolate é uma arte dramática

  • Publicado 5 anos atrás

Cachaça e chocolate provêm de contextos distintos. Mas o encontro de suas personalidades contrastantes pode ser uma cena surpreendente. Maurício Ayer descreve a harmonização com cachaça e chocolate como uma arte narrativa e coloca essa obra em prática combinando cachaça com chocolate.

– Opa, bora harmonizar cachaça com chocolate?

– Olha, Felipe… vou ter que pensar muito, mas acho que sim…

– A Páscoa tá aí…

– Com um argumento tão forte, não vejo como recusar…

Assim rumei para a sede do Mapa da Cachaça, no Pacaembu, onde a cachaça enfrentaria o chocolate em monumental contenda. Felipe Jannuzzi, pelo Mapa, forneceu a casa e a cachaça, e a revista Prazeres da Mesa, na pessoa do jornalista Tulio Silva, entrou com o chocolate. Com as bocas, línguas e o justificado bom humor entramos o mixologista Rodolfo Bob e este etilista que vos escreve.

A proposta: juntar chocolates com diferentes teores de cacau com algumas cachaças armazenadas em diferentes madeiras, além de uma branca. E ver no que dá.

O encontro tinha ares experimentais. Mais que tirar julgamentos ou certezas, a ideia era sair dali com perguntas saborosas o suficiente para inspirar outros experimentos, que nos façam avançar. Tudo pelo progresso da ciência. E nossa “ciência” só pode se pautar pelo binômio saber-sabor: o conhecimento que leva a aprofundar o deleite da degustação; o demorar-se no gosto como única maneira de ser transformado pela experiência, sabendo mais do que se sabia antes.

O Felipe fez um breve e fiel relato de nosso passeio exploratório pela mesa do Mapa. Queria acrescentar umas reflexões. Porque, em dado momento, nos vimos em meio a uma polêmica. Afinal, deveríamos seguir uma metodologia única e obrigatória para toda a sessão de harmonização? Caso afirmativo, que tipo de conclusão esperar?

Metodologia do experimento: como harmonizar cachaça com chocolate?

A polêmica se colocou entre duas alternativas. Uma seria impor as mesmas condições para cada harmonização. Deveríamos morder o chocolate, deixá-lo preencher a boca, então sorver a cachaça e atentar a cada sensação produzida, até engolir a mistura e esperar os efeitos se extinguirem. A outra hipótese era a de não ter nenhuma constante no processo, ou seja, deixar o caráter exploratório da proposta correr sem freios.

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Harmonização de cachaça com chocolate de diferentes concentrações de cacau. O amargo casou bem com cachaça extra-premium envelhecida em carvalho e bálsamo

A primeira hipótese, a de manter as condições de degustação estáveis, torna possível a comparação. A segunda, se não permite comparar, se aproxima da situação real das pessoas quando provam a combinação, cada hora é de um jeito.

Do ponto de vista das conclusões, a primeira deveria apontar para aquelas combinações mais certeiras, que dependem menos de fatores secundários. Já a segunda aponta para um monte de histórias mais compridas, tipo: olha, esse chocolate e essa cachaça são muito intensos, não seria o caso de tomar um café depois? Ou: essa cachaça não combina com esse chocolate, mas sabe que eu gostei, me lembra aquele bombom, o que será que falta?

Naturalmente, aconteceu de a cada prova começarmos mantendo o padrão e divagarmos depois seguindo a intuição ou alguma ideia que surgiu.

Sem menosprezar em nada o primeiro caminho, que sem dúvida é necessário para conhecer melhor a combinação, acabei me descobrindo um fervoroso adepto do segundo. O que me faz vibrar é a possibilidade de brincar livremente com os elementos em jogo: as várias características do alimento e da bebida, as quantidades de cada um, os tipos de copo, as temperaturas… e o que mais se quiser levar em conta.

Harmonização é uma arte dramática

Descobri que, pra mim, a harmonização é uma arte narrativa. São dois (ou mais) personagens que se encontram e contam uma breve história. Ou melhor, dá pra ser mais preciso: é uma arte dramática, e o seu teatro – talvez o menor teatro do mundo, de um único espectador – é a boca. Considerar o tempo e o espaço, a performance de cada personagem e o que eles têm para contar ao se encontrarem desde que entram até saírem de cena, é o que o harmonizador tem que conceber e propor. É possível que um personagem tenha que entrar em cena antes, fazer um pequeno monólogo, para em seguida ser complementado ou contraposto pelo outro.

Como nas artes, há muito conhecimento técnico a ser mobilizado, mas o fundamento é subjetivo. E o espectador ou espectadora poderá gostar ou não, não são obrigados a nada. A degustação é, por excelência, uma situação de crítica. O degustador poderá gostar um pouco, recusar absolutamente, ou, mesmo com reservas, reconhecer que aquele evento que acontece diante de seus olhos, nariz e boca faz acontecer coisas peculiares que merecem atenção.

coringa

Assim é que alimentos que pertencem a um mesmo universo cultural podem ter dificuldade em harmonizar. Digamos que o Bozo e o Capitão América são muito parecidos, mas não vai ser fácil criar a cena em que ambos interagem. Talvez fosse preciso transformar o Bozo num vilão psicopata – mas aí ele já não é o Bozo, é o Coringa – ou fazer este encontro ser algo tão casual a ponto de eles apenas se olharem e se reconhecerem, um simples confronto de presenças, sem outras consequências dramáticas. Mas a primeira possibilidade, de fato, é a evidente constatação do grotesco deste encontro, que pode gerar o riso ou apenas o constrangimento. Tipo hamburguer com milk shake, algo tão frequente quanto bizarro.

Espero que a analogia tenha servido: a harmonização é uma espécie de encenação, e os alimentos que coloco na boca para interagirem em meu paladar são como personagens de uma cena. Está muito abstrato, eu sei, por isso voltemos ao nosso encontro.

Harmonizando cachaça com chocolate

A combinação que eu mais gostei foi a de uma Weber Haus Extra Premium – que fica cinco anos em tonéis de carvalho e um ano em tonéis de bálsamo – com um Chocolat du Jour 75% de cacau. Mas não é uma mistura que funciona em qualquer condição, de jeito nenhum. Se confrontados ao mesmo tempo, o chocolate amargo, intenso demais, massacra e finaliza a delicadamente doce Weber Haus. Então fui experimentando os vários tempos desse encontro. Cheguei à dramaturgia da cena.

Entra o chocolate com energia, gritando com fúria, presença viril, masculina. Sua beleza não é sutil, está na totalidade de sua presença, que se impõe sem agredir. O chocolate logo atinge seu pico, mas então nota-se que sorrateiramente uma dúvida se introduz no seu discurso. A intensidade do drama inicial cede, mas ainda vibra no espaço do teatro. O chocolate perde fôlego.

Acendem-se luzes no outro canto do palco para a entrada da cachaça, delicada e bela, muito feminina. Ela não se sente em nada ameaçada pela dureza do confronto, sua força vem de outro lugar. Com palavras sutis e muito bem colocadas, ressignifica todo o trágico destino anunciado pelo chocolate, abre a uma compreensão mais profunda do drama, como se dissesse: o conflito não se resolverá, chocolate, não adianta gritar, mas veja como você, ao meu lado, também é capaz de sutilezas, há ternura sob a sua brutalidade.

É a humanidade que se apresenta: na fragilidade, na dança dos extremos, numa miríade de especiarias que surge do encontro da complexa e sutil Weber Haus com o intenso, mas já atenuado, Chocolat du Jour 75%.

Talvez por estarmos ali, na sede do Mapa da Cachaça, bem de frente para o Estádio do Pacaembu, me ocorreu a mesma cena “reescrita” para o palco do futebol: a jogada começa com uma disputa de bola na intermediária, o segundo-volante Chocolate rouba ainda no seu campo e dispara, os adversários tentam, até com violência, mas nada parece ser capaz de deter o avanço vigoroso em diagonal pelo centro do gramado. A plateia se exalta, Chocolate vai fazer um gol de placa. Quando já se aproxima da área adversária, perde velocidade num drible e um zagueiro o alcança, não há condições de chute. Chocolate então passa a bola para o leve e habilidoso atacante Cachaça, que chega pela meia-esquerda. Com um sutil jogo de corpo, Cachaça desbaratina a zaga, então saca sei-lá-de-onde um lençol que aplica ao derradeiro beque, e vê o gol se abrir à sua frente. A bola parece completar sua parábola em câmera lenta, mas antes de retornar ao solo leva o tapa preciso da chuteira de Cachaça, para ir receber a carícia das redes.

A torcida não sabe se explode ou fica muda. Quem merece a reverência das massas: Chocolate, pela determinação, virilidade e força, ou Cachaça, pela sutileza e plasticidade de sua arte? A essa dúvida poderíamos dar o nome de harmonização.

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