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ReporO segredo dele seria nosso vínculo de minutos em São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte. Eu mal tinha começado a caminhar pela areia da praia, recém-chegada de Natal, e Carlinhos, um gostosense, veio falar comigo.
“Qui maldadi êlish tão fazenu cum bichinhu, né?” – ele me disse, reparando que eu prestava atenção na proeza de três moleques tentando montar um burro bravo em pêlo, na marra, ali na praia. “É… mulecada é fogo, né?”, desconversei.
– Tu num é daqui não, é?
– Não, sô d´São Paulo.
– Da capital?
– Aham.
– Eu conheçu duas minina qui móra lá, a Andréia i a Solange. Tu conhece elas?
– Conheço não… São Paulo é muito grande, né?
– É…
Carlinhos me acompanhou pela praia até um restaurante da diminuta cidade de Gostoso, vila de pescadores quase deserta em períodos de baixa temporada. Eu tinha muita fome e estava feliz porque a comida nordestina é sempre abundante, do tamanho das maiores cobiças. Convidei Carlinhos pra almoçar. Ele não quis. “Pelo menos me acompanha na cerveja”.
– Num bêbu – ele disse.
– E um refrigerante?
– Pódi sê.
Sotaque arrastado o do Carlinhos, voz mansa, sorrisinho de esguelha, tímido, e um olhar assim, meio perdido, de quem está ali e não está ao mesmo tempo. Enquanto eu comia o peito de frango grelhado com batata frita e arroz, Carlinhos me olhava com apreensão, ensaiando algo pra dizer e que não dizia por pudor. Mas o segredo acabou ficando grande demais dentro dele e minha disponibilidade de turista era um ímã que o atraía. Carlinhos apoiou o copo de Coca-Cola na mesa, inclinou o corpo na minha direção, olhou bem dentro dos meus olhos até quase ficar estrábico e me disse baixinho que queria me contar um sonho. “Pó contá, Carlinhos”.
– Tu sábi u Uíllian Bônei?
– Quem?
– U Uílian Bônei, aqueli qui apresenta u jórrrnal nacional…
– Ah! Sei sei
– Eu sonhu cum Eli.
– Sonha u quê?
– Qui eu sô Eli i qui aprésentu u jórrnal cum êli também.
– Nossa…
– Eu tô aqui sentadu i êli também… eu falu, êli fala..
– Cêis apresentam o jornal juntos?
– Aham… i eu sô êli. Meu sonhu é sê êli.
Carlinhos se inclinava mais na minha direção conforme o sonho ia se tornando mais sério pra ele. Eu mesma já tinha estacionado os talheres e empurrado o prato pro lado pra dar espaço ao seu segredo.
– Eu rá sonhava c´um Bônei antish di cunhecê êli. Aí em 96 minha vó compro u´a televisão, eu nunca tinha assistido u´a, aí eu vi u Bônei i pensei qui éra êli qui eu sonhava.
Carlinhos fez silêncio e o olhar dele procurou ao redor se alguém mais nos ouvia. Mas não. O silêncio de Gostoso não reconhecia aquela extravagância. E certamente ninguém mais ouviria aquela história, porque em São Miguel do Gostoso, Carlinhos era o menino que passava e diziam que “lá ía o doidinho”.
– Cê qué apresentá o jornal nacional, Carlinhos?
– Quéru. I u Bônei dissi qui´eu vô.
– Quando ele dissi?
– Quando eu sonhei cum êli uns dia pátraiz. Sonhei qui a rênti tárra nu ispaçu i êli lançava uns raiu lêisi…. é raiu lêisi, é?
– É.
– Êli lançava essish ráiu nu meu zói i a rênti saía vuânu i êli dizia qui´eu ía apresentá.
Carlinhos contou que escreveu para William Bonner contando do sonho.
– Maish êli num réshpondeu… Achu qui ninguém in Goshtos rá sonho issu, só eu.
O gostosense terminou a Coca-Cola e não quis outra. Fez silêncio e escondeu os olhos no fundo do copo. Eu não terminei o frango. Carlinhos e eu, cúmplices, ficamos beliscando as batatas que sobraram na travessa e ouvindo a gritaria dos moleques que ainda tentavam montar o burro bravo em pêlo.
Ilustração: Renan T Duarte. Renan costuma desenhar sobre corações, quadrinhos, contos de fada, cultura pop e tudo mais que der na telha no seu blog do Reds
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