Comer com a mão

  • Publicado 12 anos atrás

Os talheres têm sua graça e utilidade. Mas comer com a mão é pura poesia. Cada alimento dá sua recompensa particular àquele que o sustenta com as próprias mãos. Pode ser uma recompensa úmida, seca, grudenta ou oleosa, de texturas, cores, cheiros e gostos infinitos, e com infinitos sons que se desdobram na boca, na língua, entre os dentes, no palato, e ainda ruidosos escorrem pela garganta. No fim do banquete, não é só a fome que fica em paz. Todos os sentidos se apaziguam com a chegada da comida ao corpo trazida pela simplicidade e calor das próprias mãos.

No caso do caju, esse suculento, a nódoa que brota dele escorre pela cara, dedos e pulsos, e ao longo do dia, mesmo depois de lavadas as mãos, se perpetua na vida da gente como um lembrança aromática do momento em que você ficou na ponta do pé pra alcançar a fruta no galho; ou do momento em que você tirou um chinelo, pegou-o com firmeza, olhou pra cima e, ao modo dos caboclos, praticou o “Havaianas ao caju”: de primeira, você acerta a fruta lá no alto, o galho faz creck!, e um presente amarelo, doce e gordo cai do céu direto nas suas mãos. Esse é o caju enodando a pele e a memória.

Crônicas e Contos - Sabrina Duran comendo caju na Paraíba

Sabrina comendo caju na Paraíba

No meio da selva, entre onças escondidas na mata e macacos que se anunciam no topo das árvores, tem o peixe assado na fogueira e o arroz empapado cozido numa lata, sem óleo nem alho, só sal e o orvalho que pinga das folhas pendendo das copas. A carne fica pronta primeiro. O peixe é tenro e fresco, recém-pescado num rio ali da redondeza. Também não há tempero – a vida na selva é comedida –, e por isso seu sabor é virgem, sem interferência do condimento dos homens. Puro peixe com peixe. A mão fica encharcada de suculência. Depois chega o arroz papento, que vem pra dar liga e firmeza à carne branca. Com a ponta dos dedos você prega um no outro usando a folha de bananeira de suporte. Eles se unem, formam uma “unidade de dois” muito bem ajambrada, duplo tom de branco, duplo prazer de provar o sabor natural dos alimentos que chegam à boca pelas mãos quase como saíram da natureza: virgens de gostos alheios.

Crônicas e Contos - comendo peixe assado na fogueira e arroz no meio da selva, à beira do Rio Negro (Amazonas)

Sabrina comendo peixe assado no Amazonas

Tem também a sardinha frita acompanhada por farinha e limão. Ela vem morena por fora, com estrias feitas à faca na pele a fim de que o tempero penetre melhor na carne dela e na língua da gente. Na nossa mão, erguida à altura da boca e bem perto dos olhos, a sardinha engrandece – para a satisfação da nossa gula superlativa. A ponta dos dedos sente sua aspereza de fachada de farinha endurecida no óleo fervente. O olfato se anima, a boca se abre. Pequenas minas de saliva brotam das papilas assanhadas – “é sardinha frita!”, anunciam o olfato e os olhos. Sardinha no dente também faz creck!, mas em seguida derrete, toda quente, toda rendida na boca. O branco macio do seu recheio nos remete a uma vida tranqüila, suave, a uma possibilidade de paz à mandíbula e aos dentes. Não é preciso força nem muitos movimentos da boca para integrá-la ao nosso corpo. A sardinha inerme e macia se junta à nossa saliva e vai nadar garganta adentro.

Crônicas e Contos - Sabrina Duran na Praia da Lua - Manaus

Comendo sardinha na Praia da Lua – Manaus

Por último, mas não “por fim” (porque comer com a mão é infinito), tem a tapioca com queijo e o café preto. De novo a simplicidade. Massa, manteiga, queijo e panela no fogo. A dona que prepara o alimento é sorridente e gorda e está lá na cozinha, lenço amarrado na cabeça, falando em voz alta que “logo mais a tapioca tá pronta, fia!”. A tapioca chega. Meia lua de pura textura, gordura e sabor. Vieram talheres com ela. É só praxe. A mão esquerda junta garfo e faca e os isola pra sempre num canto da mesa. A direita se abre e se deita espalmada nas costas da tapioca, sentindo os grãos irregulares da sua pele e a temperatura do queijo quente querendo atravessar a massa. Não há cerimônias. A mão direita envolve a tapioca pela cintura, ergue-a à altura dos olhos e a faz desfilar por alguns segundos – frente, costas, perfil, toda lenta. No interior da boca, um mar de saliva. A tapioca entra, os dentes ganham aquilo que nos cabe, a língua nos entrega, e de novo os dentes conquistam pra gente o sabor escondido no corpo do alimento. Enquanto a língua se inteira das maravilhas de uma tapioca de queijo no café da manhã à beira da praia, a mão se afasta da boca e mantém a tapioca em riste, ao alcance dos olhos, que também comem sem dentes. As pontas dos dedos brilham de óleo. Os olhos brilham de satisfação. A boca segue encharcando de gosto. Nosso corpo, aos poucos, fica mais à vontade no mundo. A mão que segura a tapioca torna a erguê-la. O trajeto lento do alimento levado à boca aumenta o prazer da chegada. E assim será para sempre. A vida é mais suculenta com poesia feita à mão.

Tapioca de Queijo no Ceará

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