Vida de Cabocla Urbanóide

  • Publicado 12 anos atrás

Quem nasce na cidade costuma ter a sola do pé fina, preservada pela textura macia da palmilha de pano + borracha dos tênis e sapatos. Mas depois de seis meses submetendo a sola à aspereza das areias do litoral nordestino, à vermelhidão das terras do norte e ao contato cru da pele com o sal, o sol e com os extremismos climáticos daquelas bandas, a fineza vai toda embora. O que fica é a dureza e uns sulcos cascudos no calcanhar, que remetem muito aos sulcos das falésias coloridas de Canoa Quebrada, no Ceará. Assim ficam os pés de quem, como eu, é do mato por afinidade de espírito, mas não por localização geográfica.

crônicas e contos - Pés caboclos em kombi lotação na ilha de Itamaracá.

Pés caboclos em Kombi lotação na ilha de Itamaracá

A mutação epitelial nos pés nem foi o fato mais extremo daquela viagem de tantas diferenças pelo norte e nordeste do país. Extremos mesmo eram os bichos que encontrei na comunidade ribeirinha a 100 quilômetros de Manaus, por exemplo, às margens do rio Negro, onde passei cinco dias. Cada inseto, cada alien de asas cascudas… um maior que o outro. Todos imortais. Às nove da noite, tudo escuro – não havia luz elétrica –, o banheiro da casa era a sala de estar de várias espécies com asas. Mas disso eu não sabia até a tentativa do primeiro banho. Atenta ao caminho até o box de madeira, lá fui eu, cabocla de alma, urbanóide na prática, com uma vela acesa, carregando toalha e pijama. Com a vela na mão direita, bem próxima das paredes do banheiro, fui escaneando cada milímetro do espaço antes de tirar a roupa e ligar o chuveiro. Parede 1: ok. Parede 2: ok. Parede 3: ok. Chão: ok. Teto: ok. Tudo limpo. Ninguém mais se movia ali além de mim. Entrei, pendurei a toalha num prego, apoiei saboneteira e pijama na privada, fechei a porta (que era a parede 4) e apoiei a vela acesa num aparador atrás dela, na mesma altura de duas baratas gigantes, uma preta, outra transparente, ambas descomunais, quase do tamanho da palma da minha mão. Prendi a respiração, peguei a vela, a saboneteira, o pijama, abri a porta, saí de ré, voltei pro quarto e dormi suja. A gente enfrenta do jeito que sabe os desafios da vida.

crônicas e contos - sabrina em itamaraca

Sabrina em Itamaraca de pés descalços

Outro extremismo caboclo ao qual um ser estranho do asfalto não está acostumado, absolutamente, é a integração da natureza à própria vida, ao próprio corpo. Natureza e caboclo estão em comunhão, e por diferentes que sejam, não se repelem. E eu juro que tentei viver isso. Mas comunhão tem limites na cabeça de um urbanóide. Quando um carrapato aderiu ao meu corpo pela primeira vez na vida, foi durante essa tal viagem. Eu estava em São Miguel do Gostoso, Rio Grande do Norte. Àquela altura, eu já havia passado por alguns lugares do norte e nordeste e vivido algumas caboclices que me deixaram mais ligeira, a carne mais dura, a vida mais agreste. Já tinha tomado mordida de cavalo e picadas de marimbondo; tinha tido insolação, virose e intoxicação alimentar. Já tinha montado um cavalo bravo com sela frouxa que decidiu disparar comigo e também já havia atolado no mangue até os joelhos, sozinha, na Ilha de Itamaracá (PE). Ainda não havia sido queimada pelo tentáculo de uma caravela (espécie de água viva) que confundi com um fio plástico boiando num mar da Bahia. Mas o carrapato foi algo totalmente especial.

Eu me arrumava diante do espelho quando, ao levantar o braço, notei uma pinta inédita no antebraço, na altura do cotovelo. Era impossível enxergar a pinta de frente sem utilizar o espelho. Me aproximei, olhei, olhei. Pinta diferente, essa… Graaande, gordinha até. Do dia pra noite? Humm… E isso aqui na borda? Tá parecendo com… com…. patas? A ideia de que poderia ser um carrapato me deu uma agonia momentânea, dessas de querer sair correndo e pedir ajuda. O desespero, na verdade, era muito menos pela periculosidade real do bicho do que por conta de um pesadelo recorrente que tenho (e que é angustiante) de que um bicho asqueroso morde alguma parte do meu corpo e, por mais que eu tente tirá-lo de mim, ele não se deixa soltar. Mas àquela altura da expedição, como eu disse, a vida estava bem mais agreste. Me tranquilizei pensando que poderia não ser um carrapato, e sim um outro bicho qualquer, menos aderente. Tentei fazer como em outra vez durante aquela viagem, quando peguei na ponta dos dedos um bicho que caminhava pelo meu corpo, ergui-o na frente da tela do notebook, digitei “carrapato” no Google, cliquei em imagens e comparei o bicho real com o virtual. Não era carrapato. Quando tentei tirar o inseto do meu cotovelo pra confirmar na internet quem era ele constatei, pela resistência dele em me deixar, que daquela vez era, sim, um carrapato.

Não havia jeito de nos separarmos. Cavuquei as bordas com a unha, tentei espremê-lo pele afora pelas laterais; até o cartão de crédito eu usei pra ralar a pele e ver se ele se desprendia. Impossível. Era carrapato mesmo; um pioneiro no meu corpo e que, pelo ineditismo, até merecia estar ali. Foi então que lembrei da minha mãe me contando de como tirava o bicho do corpo nos seus tempos de cabocla de verdade, nas roças do interior de Minas Gerais onde ela cresceu e onde carrapato é rei. Basta tocar fogo no bicho que ele se desprende, simples assim – mas é preciso cuidado ao retirá-lo do corpo pra que não fique nenhuma pata encalacrada na pele que venha a inflamar depois. Bastou lamber o bicho com a chama do isqueiro umas duas vezes para ele jogar as patinhas pra cima, feito gente em micareta. Com um pinça, icei seu corpinho tostado, inteiriço, e o coloquei na palma da mão para admirá-lo. Era grande e parrudo meu primeiro carrapato. Um verdadeiro herói. Tive o impulso de ligar pra minha mãe e contar a façanha. Mas ela, sem dúvida, ficaria preocupadíssima com doenças provocadas por carrapatos, barbeiros, mosquitos em geral, e ia perguntar se eu estava comendo direito, tomando água, dormindo, se minha alergia estava controlada, se eu estava usando protetor solar…. afff. Melhor que isso, deixei registrado pra ela e mais uma centena de pessoas no meu Facebook o relato daquela experiência. Foi um registro curioso: meu PC aberto em cima da mesa da pousada, areia e maresia por todos os cantos, coqueiros, pernilongos, meu pé cascudo descalço no chão, o carrapato-defunto ao lado do teclado. No texto postado no mural do Face, a experiência narrada com uma linguagem matuta que desenvolvi especialmente para as redes sociais. Minha caboclice urbanóide só podia chegar ao mundo via internet.

“agora é oficial: ganhei um carrapato no cotovelo. pra tirar é assim: tu acende um fósforo, mete o fogo no bicho, ele joga as maozinhas pra cima (micareta!), ce pega ele no contrapé com uma pinça e puxa. depois poe ele num envelope e manda pra mãe com o seguinte dizer: “mãe, estive em são miguel do gostoso e lembrei de voce”, afinal, foi ela quem ensinou o truque do fogo. salve, dona maria, (ainda) to saudável”.

Crônicas e Contos - Escritório em São Miguel do Gostoso

Escritório em São Miguel do Gostoso

 

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