Tu é rapaiz ou môça?

  • Publicado 13 anos atrás

Sabrina Duran no Crônicas e Contos escreve sobre as confusões de gênero pelas quais passou em 6 meses viajando pelo Brasil.

Ilustração Sami Makino para crônicas de Sabrina Duran

“Na maioria dos episódios de confusão de gênero, a vida é bem mais difícil pra quem confunde” – Sabrina Duran para o Crônicas e Contos

Quantas vezes não ouvi essa pergunta enquanto viajava a trabalho por cidades nordestinas. Foram mais de 50 cidades visitadas, e em cada uma delas, uma estranheza: ôxx, maish com u cabelu curtu assim, tu é rapaiz, né não?

Pois é… não. Eu sô é moça.

Cabelo curto pra mulher no nordeste não é carne de vaca. Você passa dias andando por lugares diferentes e não vê uma única nuquinha feminina de fora, batidinha, muito menos raspada como a minha – raspada atrás e dos lados. E a minha semi-careca vem adornada com uma estranheza a mais: um topete no topo da moranga. Comecei a notar que cabelo curto não era mesmo algo considerado feminino no nordeste quando comecei a ser confundida, sistematicamente, com um menino. E isso não era premissa de pessoas mais velhas, que poderiam ser consideradas conservadoras ou com suspeita de problema de visão. Jovens também se confundiam comigo, e quando estavam em grupo, os comentários vinham em forma de risinhos.

Meu rosto não é masculino. Mas admito que minhas roupas contribuíam um pouco para a confusão de gênero. Como fazia sempre muito calor pelos lugares por onde passava, meu traje de todos os dias era sempre um short velho, uma camiseta velha, larga e com a gola e mangas cortadas, chinelo e nenhuma vaidade.

Lembro de estar lavando as mãos no banheiro do aeroporto de Aracaju (SE) quando uma senhora entrou distraída, buscando alguma coisa dentro da bolsa. Ao erguer a cabeça e me ver de perfil lavando as mãos na pia (eu estava sozinha ali), ela exclamou em voz alta: “Nossa! Entrei no banheiro de homem!”. A senhora, então, deu meia-volta e foi ao outro banheiro. No de homem. Num ônibus lotado de Salvador, eu tentava descer enquanto uma multidão tentava entrar. Alguém com muita pressa pra sair atrás de mim me empurrava e dizia: vai, môço, anda, anda! Eu andava, e procurava não olhar para trás pra não ter que dar nenhuma resposta enviesada – depois de um tempo de confusões repetidas e explicações decoradas (“é que em São Paulo as mulheres também usam cabelo curto e blá blá blá), o limite de paciência da gente acaba ficando um pouco menor.

O engano primeiro, eu me recordo, partiu de forma doce de uma menininha de quatro anos, a Vitória, que era minha vizinha de rede num barco que ia de Manaus (AM) a Belém (PA). Vitória estava no colo da mãe e me olhava com muita circunspeção. Quando se sentiu à vontade, me perguntou: “tu é muié?”. Sou, respondi. “I tu tem filho?”. Não, respondi de novo. Alguma convenção sobre aparências deve ter começado a se quebrar dentro dela naquele momento, de forma ainda confusa: cabelo curto + mulher + sem filhos? Algo aí não bate. Mas a pequena Vitória ainda teria tempo até começar a fritar com essas reflexões mais conceituais sobre os estereótipos humanos.

A capital paulista, onde nasci, é o Brasil pasteurizado. As comidas, hábitos, costumes, as músicas, as tradições, tudo – ou quase tudo – foi naturalmente padronizado e amenizado. Talvez até para tornar a cidade mais palatável a todos os migrantes e imigrantes que aqui chegassem e se estabelecessem. Em São Paulo, tudo é permitido porque não temos “rabo preso” com nenhuma cultura – embora abriguemos quase todas elas. Minha semi-careca + meu topete no alto da moranga não chamam a atenção por aqui – a não ser quando eu decido sair de casa com um topete do Elvis.

Entre todas as confusões de gênero pelas quais passei em seis meses de viagem, nenhuma delas foi tão emblemática quanto a de um segurança da prefeitura de Olinda, em Pernambuco. Eu me dirigi a ele, um senhor de uns 60 anos, para pedir uma informação. O senhor era tão simpático que ficamos conversando por uns 10 minutos. Ele me mostrou a prefeitura toda, me contou histórias e deu conselhos. Só quando nos despedimos é que e ele perguntou meu nome.

– Sabrina.
– Então tu é moça?
– Sô.
– Pensei que tu fossi rapaiz.
– Não, sô moça.
– Quantuzanu qui tu tem?
– Trinta.
– Vixi! Pensei quitutivéssi catôzi.
– Não, tenho trinta.

Ele fez silêncio. Tinha cara de confuso.

– Ôxi! Primêro tu diz qui é rapaiz… agóra diz qui tem trinta anos.
– Eu disse que sô moça.
– I foi?
– Foi.
– Vixi! Agóra laishcô!
Na maioria dos episódios de confusão de gênero, a vida é bem mais difícil pra quem confunde.

* A ilustração desse texto da Sabrina Duran foi especialmente feita pela talentosa Sami Makino.

 

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