Dominó Gratias

  • Publicado 10 anos atrás

Carol Rodrigues escreve um lindo e sensível texto sobre a rebeldia e a inquietude que chegam com o passar dos anos. O seu personagem principal é Baltazar, um velho tenente-coronel que passa suas manhãs jogando dominó com seus companheiros de velhice.

foto de Thiago Carvalhares para texto de Carol Rodrigues

Paralelepípedos exibem a articulação entre boca e dentadura e as palavras grandes. São as pedras ou ossos ou madeiras escuras o ébano em linda função matemática. E a sorte. O destino de sair com boas peças duplas em números próprios, o quatro o cinco e o duplo meia-dúzia tem o passo mais largo.

Tenente-coronel na reserva desde os cinquenta e seis e agora com oitenta e cinco, Baltazar conta quase uma trécada ou cinco passos largos de meias dúzias sem defender o país. Agora defende a fronteira sul da mesinha chumbada na Praça do Peixe em Bataguassu. Graças ao Senhor que não tem feira. É só um peixe enorme que chafariza de meia em meia hora atrapalhando um pouco o jogo. A mulher já se foi e nem morreu não, abandonou mesmo foi, curtir a vida longe do sisudo e que milagre pra mulher o novo milênio.

Um dia (estava nublado e chovia fininho), Baltazar não saiu com duplo quatro nem cinco nem seis. Na décima peça colocada, ele tinha mais pedras até que o Seu Diógenes, um velho que quase babava (mas não na mesinha da Praça do Peixe que Baltazar não permite desordem). Na curva entre um quatro-cinco e um cinco-nove, o seu Moacyr (que perdia a memória) levou a melhor e Baltazar se viu sem saída. E a vida perdeu o sentido. Baltazar levantou do banquinho, que chumbado nem arrastava como efeito de braveza, ergueu o cenho o queixo enrugado em dureza forjada (a testa mais franzida que a nuca) a postura ereta de mil novecentos e setenta e dois e nesse dia Baltazar tomou a decisão mais complexa de sua maturidade. Baltazar fugiu de casa.

Mas ele morava sozinho. Pois é. Acervo da rebeldia. Baltazar largou as pedras todas (e aquelas eram de ébano), andou até a rodovia que separa o Mato Grosso do Sul de São Paulo. Esticou o dedão e logo parou um caminhão novinho reluzente (parecia sonho pra quem sonha com caminhão). Entra meu senhor, o caminhoneiro Murilo, simpatia conhecida na região e pediu que entrasse com cuidado. O degrau é alto. Tá me gozando rapaz? Jamais. Baltazar se acomoda e deixa a mão grossa na curva externa entre teto e porta. Ao tempo que sente o vento, se mantém seguro no banco. Pra onde vamos? O caminho é pra São Paulo.

Mas o velho esqueceu de urinar. Envergonhado de pedir licença pra mijar no matinho, passando já ali em Auriflama disse que é aqui mesmo que eu fico. Murilo respondeu que ali não fica não, boa sorte ao velho e seguiu a leste.

O Baltazar desceu parou num bar e mijou. Depois sentou numa cadeirinha de plástico que se mexia muito e foi difícil. A mesinha da brahma também instável fez o velho pigarrear. Pediu uma pinguinha. Qual tem? Jequitibá com Amburama. Ela desceu batizada num dedinho de água e uma pitadinha de açúcar (o homem no avental teve medo do velho enfartar).

Agora que não tinha sua mesinha suas pedrinhas e o controle de um território o velho não tinha nada. Ficou lá a marejar a paisagem. E o olhinho de mil camadas (verde amarelo marrom preto querosene) se umedeceu mais que o comum. Ele viu a vida passar e depois viu ela voltar de ré pela estradinha tão curta de lá até aqui. Pediu outra pinguinha que expulsou uma lágrima. E permitiu o peito sentir um calorzinho de saudade.

Urinou de novo, atravessou a pista (o passo ainda é ágil) e esticou o dedão pro lado de cá.

Reviravoltas da vida, as pedrinhas de ébano persistem na matemática feita e Baltazar recobrou a sorte. Seu Diógenes pode babar se quiser, e seu Moacyr pode até roubar um pouquinho, tadinho, perdendo a memória, Baltazar até sorri e até pensa por onde anda sua mulher. Por onde anda também o país.

As pedrinhas (às vezes) desenham na mesinha chumbada um ziguezaguezinho imprevisto. Dominó é Deus em Latim, babou o seu Diógenes, Dominó é brinquedo de Deus, recobrou a memória o seu Moacyr, Dominó vem da China, intelectualizou o seu Névio (que só aparecia às vezes), Dominó é o que se deve fazer, olhou pro céu o Baltazar. É que o céu se mexia.

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