A palavra é u qui’á rênti diz

  • Publicado 13 anos atrás

Galinhos - Sabrina Duran

– A sinhóra qui’é da filmági? – me pergunta o menino moreno e franzino sentado no lombo do cavalo.
– Eu escrevo, não filmo não – respondi, escondida do sol nordestino sob uma sombra.
– Maish num foi tu qui pidiu u cavalu?
– Foi. Tenho que trabalhar amanhã com ele. Me aluga?
– Alugu.
– Ele é manso?
– É.
– Posso fazer um teste?
– Pódi.

(pocotó, pocotó, pocotó)

– É, ele é manso. Passa aqui às 7 da manhã pra me entregar, por favor?
– Passu.
– Como ele chama?
– Salaminhu.

O sotaque é de um nativo de Galinhos, península dessas de cinema, areia branca e mar claro a 165 km de Natal, no Rio Grande do Norte. Lá não há carros nem motos, e só os Salaminhos e seus iguais eqüinos é que fazem o transporte por terra – além das pernas das pessoas e algumas charretes puxadas por burros. Lá também não há o ruído dissonante das cidades, seus sons metálicos, gritos de ambulâncias e máquinas. Em Galinhos a existência não faz barulho, e o som que há é o de uma música sutil, não a do mar – essa já nem se ouve mais porque é som ambiente –, mas a que sai da boca daqueles que são de Galinhos. Falassem um pouco mais rápido, os galinhenses me atordoariam. As palavras que eles dizem emanam todas juntinhas, ininterruptas, amalgamadas numa cadência musical que eu desconhecia. A fala em Galinhos tem mais fonemas do que os brasileiros do sul, sudeste e centro-oeste conhecem. Sorte do galinhense, que desde cedo se habitua a sinfonias incríveis de vogais e consoantes que se coadunam de um jeito poético, insuspeitável. A música brota da boca da mãe que ralha com filho que não quer tomar banho, do pescador contando do mar que hoje foi bom pra peixe pequeno, do moleque acertando com outro uma corrida a cavalo pela beira da praia, montado no pêlo, segurando na crina.

A música de Galinhos sai das cordas vocais, da língua no palato, dos dentes cerrados, dos dentes entreabertos, do ar brotando cheio de surpresas sonoras do aparelho fonador dessa gente que canta enquanto fala. Toda voz galinhense que se propaga vai entrar no ouvido forasteiro como um borbulhar de vogais abertíssimas, de erres que se arrastam num segundo e morrem suspirados na garganta, de “ésses” no fim das palavras que simulam o som da chuva ou do peixe sendo frito na panela de casa. As palavras galinhenses são cheias de significados novos, de sentidos redefinidos e mil interpretações possíveis segundo as circunstâncias em que são proferidas, do humor de quem fala, da aptidão de quem ouve, dos amores em jogo, do calor, do vento que faz a curva na península.

Meu trabalho é com a palavra. Escrevo. Mas antes de escrever, ouço. Ouço mais que escrevo. E Salaminho, o cavalo que aluguei pra sair pelas ruazinhas de areia e cimento de Galinhos e conhecer os nativos e suas vidas, parece ter, de propósito, me guiado ao lugar exato onde acontecia o diálogo mais genial que já presenciei, um desses que fazem a gente querer escrever um tratado a respeito, pra logo em seguida se abster da tarefa porque já está tão completo em sua simplicidade que não precisa que ninguém lhe atrapalhe com retóricas. O diálogo foi na varanda de uma casa simples perto de um braço de rio. Era um pouco antes do almoço, tempo quente, silêncio no entorno. Um casal trabalhava na reforma de uma mesa.

– Tu tem qui midí éssa mêsa aí, ó.
– Num é midí, é méssá.
– Méssá?
– É.
– Né não, hômi. É midí.
– I é?

– É não.
– É sim.
– (silêncio) Mais a palavra num é u qui’á rênti diz?
– É?
– É, ué. I é méssá qui’eu dígu.

 

 

foto do destaque por lowfill

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