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ResetSinto falta da simplicidade, do raciocínio claro e objetivo, das explicações retas, lisas. Sinto essa falta mais em mim do que nos outros. Porque quando é nos outros, a gente ainda consegue burlar a escassez. O cidadão está lá, falando bicas, chegando em lugar nenhum pelo bem da verborragia, e a gente pede desculpas, interrompe e diz: “Fulano, por favor, ative o foco, sim?”. Ou é fulana que está lá, tecendo mil teorias sobre a necessidade de resolver uma pendenga com alguém, e se justificando, e se esquivando, e debatendo consigo mesma num eterno monólogo sonso e a gente encurta o caminho sugerindo: “mas, Fulana, por que você não marca um encontro com Beltrano pra dizer tudo isso a ele?”
Quando a falta de simplicidade é com a gente fica um pouco mais difícil sanar a coisa. Visto de dentro, o emaranhado é muito mais cabuloso. Não tem jeito de achar o fio que conduz ao centro mais puro do raciocínio. A gente tá dentro dele, do emaranhado, todo confuso, deitado e enredado, a cara voltada pro chão. Assim, não há jeito de levantar e acender a luz.
Mas a gente não toma jeito. Continua fazendo tudo igualzinho todos os dias, se complicando, rocambolizando a existência, crescendo os capítulos de uma novela que só acaba mal porque acaba tarde – se a trama terminasse antes, evitaria o cansaço e o desgaste da vida.
O sucesso dessa mazela que é o “ser complicado” só tem uma explicação: complicar as coisas é necessário. Vai falar que não é? É! É necessário porque livra a gente de dizer ou ouvir a palavra final, da decisão, daquele sim ou não rotundos (quando este é o caso – e na maioria das vezes é) que fazem a gente suar frio e ter queimação nas tripas dias antes de dizer ou ouvir. Complicar é necessário porque aperfeiçoa a criatividade. A gente passa o dia trabalhando na cozinha do nosso pensamento, preparando uma paella mental deliciosa, cheia de teorias exóticas e raras, de cores e cheiros finos que excitam nosso paladar pras coisas complexas. Mas complicar é inútil. No fim do dia, a paella não fica pronta, os ingredientes esturricam, a panela queima, a cozinha fede e a gente vai dormir com uma puta fome e com a certeza doída de que um pão na chapa honesto resolveria o problema.
E esse preâmbulo todo pra dizer que eu sentia falta da simplicidade em mim, né? Eita preâmbulo metalinguístico! E olha que eu nem estou na minha fase mais rococó do pensamento. Já tive ideias mais sinuosas – bendito psiquiatra que um dia me disse: “Sabrina, deixa de tanta metafísica, menina. A vida é X-Salada, X-Salada!”. Verdade é que estou mais comedida nas paellas de cérebro que apronto. Resolvi, há alguns meses, que minha cozinha seria minúscula pra eu não ter tanto espaço pra sujeira – ter uma vida portátil, de quitinete, resolve inúmeras questões materiais e metafísicas. Mas ainda há muito o que redimensionar aqui. Dá pra ser mais simples, sabe? Sempre dá.
No ano passado, passei seis meses viajando pelo norte e nordeste do país, a trabalho. Foi lá, no meio do total desconhecido e de uma escassez proposital, que descobri isso de ser simples na vida. Ouvi e vivi histórias e diálogos que me marcaram pela crueza do pensamento, da objetividade das palavras, da filosofia cabocla que se baseia na ciência das coisas vividas – ou você acha que é apenas sol aquele monte de vinco na cara dos caboclos mais velhos? Basicamente, a simplicidade – que não é simploriedade – só é possível quando a gente tem a manha, a coragem de resolver aquele problema primeiro, aquele, que está embaixo da pilha toda e que é justamente o que a desequilibra e a faz despencar todos os dias, espalhando confusões no chão da gente. Pra meter a mão lá, na base da pilha, é preciso muito topete. Topete que um senhor pernambucano, da cara agreste e morena, palavreou assim, num diálogo rápido comigo logo que cheguei em Olinda:
Ele: tu veio sozinha, foi?
Eu: vim.
Ele: tu tem corági, né?
Eu: hum… achu qui sim.
Ele: é, tudo é mais fáci pá quem tem corági.
Eu: u senhor tem coragem?
Ele: rapáiz, eu tenhu’a corági médonha!
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