Tiquira, a aguardente de mandioca do Maranhão

  • Publicado 4 anos atrás

Escondida dentro da riqueza culinária do Maranhão, a tiquira é uma bebida totalmente brasileira! Leia o texto do pesquisador Ricardo Maranhão sobre a aguardente de mandioca

O Maranhão, para quem viaja, é cada vez mais sinônimo de beleza e prazer. Muito além de maravilhas como os Lençóis Maranhenses, como as chapadas e cachoeiras da região sul, o delta do Parnaíba, o aconchegante Rio Preguiças ao norte, e a magia das ruas coloniais e dos sobrados portugueses de São Luís, o Estado oferece uma gastronomia de notável diversidade e sabor, e dentro dela, quase clandestina, uma bebida surpreendente.

Os maranhenses souberam preservar a diversidade de influências culinárias que sua rica história recebeu. Guardaram bem a diversidade lusitana de carnes, vinhas d’alho, temperos perfumados de ascendência árabe, preparos deliciosos de peixes e o deleite de seus ricos doces. Souberam também conservar a marca africana do leite de coco, do dendê, das pimentas, da galinha d’angola, do cuxá, dos molhos intensos.

Mas acima de tudo conseguiram manter vivas várias tradições de um povo que aqui sempre esteve, mas foi vítima de um quase desaparecimento: o indígena. Usuário de uma alimentação rica e diversificada, que ia das caças às inúmeras frutas, das raízes aos insetos, e que tinha a sólida base da mandioca, do milho e do feijão, nosso antigo habitante deixou marcas no caboclo maranhense, mestiço dele: o jeito de comer com as mãos usando o “capitão”,  alimentar-se de cócoras, os assados de caça e peixes moqueados, entre outros. E há uma herança que a chegada do branco modificou, mas deixou como notável prazer: a aguardente de mandioca, a Tiquira, que existe mas não está na pauta dos produtos bem valorizados pelo comércio e pelo turismo.

Nosso índio não conhecia a destilação, e sua alegria alcoólica provinha de uma antiga bebida fermentada, feita da “rainha do Brasil” (como Câmara Cascudo chamou a universal Mandioca): o cauim, resultado do tubérculo fermentado a partir da mastigação por mulheres da tribo. Bebida que, usada até hoje por algumas nações, estimula as intermináveis danças rituais de suas longas festas.

Ora, quando o branco trouxe ao Maranhão o alambique, para fazer sua cachaça, logo alguns índios e caboclos perceberam que podiam usá-lo para destilar algum preparo da sua tão proveitosa mandioca, e chegaram ao método de preparo da Tiquira, aqui descrito por Cavalcanti Jorgenca:

“Lava-se, rala-se e prensa-se a mandioca, para eliminar o componente tóxico da raiz. A massa resultante é desfeita a mão, e espalhada sobre uma chapa quente, de modo a formar bolos, os chamados ‘beijus’, que são assados até ficarem internamente cozidos. Resfriados então os beijus, são expostos ao ar, para a proliferação espontânea dos esporos dos fungos do ambiente. Em três ou quatro dias aparecem sobre os beijus uma flora de micélios (fungos), de cor rosada. Com o passar dos dias os beijus já estão inteiramente contaminados e a massa sacrificada. Os beijus sacrificados são então colocados em um cocho coberto com água. No dia seguinte, encontra-se a massa desfeita e xaroposa, que é então mexida e agitada para uniformizar e arejar o mosto, que deixado exposto, completará sua fermentação alcoólica em 48 horas.  Terminada a fermentação o mosto é destilado em alambiques de barro ou de cobre.”

Cavalcanti Jorgenca
O processo de produção da cachaça e da tiquira surgiu com a presença do alambique de cobre trazida pelos europeus

Tiquira, líquido que goteja

Na extremidade do alambique, a bebida destilada goteja: daí os índios de fala tupi usarem para designá-la a palavra “tikira”, líquido que goteja.

Muito saborosa, a aguardente de mandioca tem forte graduação alcoólica: esta varia entre 38 e 54 graus, medida que foi consagrada pela regulamentação legal que definiu formalmente a bebida, no Diário Oficial da União (DOU) de 24 de Abril de 2008. Entretanto, essa regulamentação ainda é um tanto precária, assim como a fiscalização, e não é improvável que haja alguns produtos com teor alcoólico maior.

Essa precariedade de que falamos está associada justamente com o fato de que, se um viajante chega no Maranhão e vai aos lugares turísticos mais afamados e badalados, não encontra a Tiquira. Muitos maranhenses mal ouviram falar dela, ou desconfiam de suas falsificações: no entanto, é por trás dos belos desenhos dos azulejos dos sobrados antigos, é nos porões e nos quintais da cidade e do campo que os produtores de Tiquira trabalham: embora as estatísticas não sejam muito precisas, o IBGE calcula que sejam produzidos 640 mil litros dela por ano. A quantidade é insignificante, perto da produção de aguardente de cana, de 2 bilhões de litro por ano. Mas o que é produzido precisa ser melhor oferecido, mais divulgado, sair detrás desse silêncio que envolve a aguardente de mandioca.

E ela tem, além do excelente sabor, diversas qualidades: tem uma cor atraente, levemente rosa com tons azuis/violáceos; ela desperta uma leve e agradável euforia; é uma bebida que estimula a conversação e a sociabilidade. Sobre ela há também, como sobre muitas coisas no Maranhão, algumas lendas: a de que não se deve tomar banho depois de beber muita tiquira… Bem, lembremo-nos que para muitos maranhenses antigos há a lenda de uma imensa serpente que cresce em volta da Ilha de São Luís…

Boa para abrir o apetite antes de qualquer refeição, excelente para acompanhar pratos como o delicado vatapá maranhense e pratos de peixes, a aguardente de mandioca é também, no fundo das tradições populares, um elemento da própria identidade do Maranhão, por ser produto altamente autóctone, mais ainda do que a cachaça, pois esta é feita da cana-de-açúcar que os portugueses nos trouxeram.

tiquira Guaaja, única aguardente de mandioca formalizada do mercado
Tiquira Guaaja, única aguardente de mandioca formalizada do mercado

Há produtores de tiquira, como o da marca Guaaja, dispostos a ampliar o mercado da bebida, mantendo a qualidade do produto: a boa bebida, na verdade, adquire a cor rosa/azulada, normalmente, através da adição de casca de tangerina durante a destilação; entretanto, em algumas fábricas é obtida através da adição de corantes como o cristal-violeta, que a deixa muito azul ou quase roxa, o que não é muito bom para a saúde do consumidor.

Uma ampliação do uso da aguardente de mandioca, no quadro de uma revalorização cultural de sua tradição e seu significado, pode garantir uma maior preocupação com a sua qualidade e uma fiscalização mais efetiva, além do prazer inestimável de uma bela bebida brasileira. Vamos tirá-la da clandestinidade!

Coleções

Uma seleção dos melhores artigos do Mapa da Cachaça em diferentes tópicos

Produção de cachaça

30 artigos

Envelhecimento de cachaça

15 artigos

História da cachaça

12 artigos

Como degustar cachaça

18 artigos

Coquetéis clássicos

14 artigos

Cachaça e Saúde

7 artigos

O melhor da cachaça no seu e-mail

Assine o Mapa da Cachaça

loading...