TEDx Talks - A cachaça é nossa. E o que ela diz sobre nós?

  • Publicado 6 anos atrás

A cachaça aos poucos vai conquitando seu devido lugar de destaque. Felipe Jannuzzi apresenta nossa cachaça na conceituada plataforma TEDx.

“Me perguntava porque as cachaças, dos mais diversos lugares, são tão diferentes entre si. Percebi que mapear cachaças é também mapear aromas e sabores brasileiros, descobrir diversidade das nossas madeiras, resgatar e falar sobre a história do país.”

Há mais de 10 anos, Felipe Jannuzzi viaja para conhecer alambiques e produtores de cachaça artesanal. Ao se dar conta da importância cultural e histórica da bebida, criou o Mapa da Cachaça – projeto que seria premiado em 2014 pelo Ministério da Cultura como Melhor Projeto de Cultura Gastronômica do Brasil.

Felipe é graduado em Imagem e Som pela UFSCar e pós-graduado em Comunicação Digital pela USP. Ele é nascido em Campinas, desenvolve pesquisas sobre aromas e sabores capturados em bebidas artesanais destiladas produzidas nos mais diferentes cantos do país. Em 2016, utilizando botânicos nacionais, lançou o Virga, primeiro gim artesanal brasileiro.

Há dez anos, eu, Gabriela Barreto e Eduardo Martins criamos o “Mapa da cachaça”. Nossa vontade era viajar pelo Brasil documentando a história dos pequenos produtores de cachaça de alambique. O que nós descobrimos nas nossas viagens é que falar de cachaça era um recorte pra falar também sobre a história do Brasil, nossa cultura e também nossos aromas e sabores.

A cachaça é uma bebida exclusivamente brasileira, assim como o “Scotch whisky” só é feito na Escócia, o tequila só no México, o conhaque só na França, a cachaça só pode ser feita no Brasil. E a gente vem produzindo cachaça aqui há muitos anos.

Há indícios de produção de cachaça que datam do começo do século 16, nos primeiros anos de colonização portuguesa. E claro que nesses anos todos, a produção de cachaça evoluiu, mas ela segue basicamente o mesmo processo de produção.

A matéria-prima é a cana de açúcar, uma graminha que veio da Ásia, da Índia, que os portugueses trouxeram pro Brasil e se deu muito bem aqui. Foi a matriz econômica brasileira
nos primeiros dois séculos de Brasil colônia. E mais especificamente do caldo da cana. Existem outros destilados de cana, por exemplo, o rum também é de cana, mas ele é feito do melaço, um subproduto da indústria do açúcar. Já a cachaça é feita da garapa, aquele caldo de cana que tomamos na feira.

Depois de extraído o caldo da cana, ele é levado pra fermentação, quando leveduras transformam o açúcar da cana em um vinho de cana, que depois é levado para panelas bonitas de cobre, que a gente também chama de alambiques, que transformam esse vinho num destilado, que depois ele pode ficar armazenado em inox, que é a cachaça que chamamos de purinha ou de branquinha, ou envelhecer em barris de madeira, a cachaça amarelada. E o que é muito interessante em relação à cachaça, além dela ser muito antiga, talvez seja o destilado mais antigo da América, mas antigo do que o bourbon americano, mais antigo que o pisco, mais antigo que o tequila, ela também está espalhada por todos os estados brasileiros praticamente, o que torna o nosso trabalho de mapeamento bastante desafiador.

Marcas de cachaça pelo Brasil

O pessoal sempre acha que é cachaça é só em Minas Gerais, né? Mas existe produção tradicional de cachaças em estados como o Rio Grande do Sul, a Paraíba, o Rio de Janeiro. Esse dado de 4.124 marcas
é um dado oficial do Ministério da Agricultura, mas se a gente for considerar os produtores informais, que é aquele cara que faz no fundo de quintal, a gente pode multiplicar esse número por dez. São mais de 40 mil produtores de cachaça pelo Brasil. Talvez vocês conheçam algum familiar, algum conhecido, algum amigo que tenha aí no seu sítio, na sua fazenda um alambiquizinho fazendo cachaça.

E como falei, os primórdios da cachaça datam do começo do Brasil. Existem algumas versões, a gente não sabe precisamente dizer quando surgiu, mas foi provavelmente em algum lugar do litoral brasileiro,
ou Bahia, ou Pernambuco ou São Paulo, entre 1512 e 1532. Essa foto por exemplo, é aqui em São Paulo,
no Engenho dos Erasmos, possivelmente nos primeiros lugares que se fez cachaça aqui no Brasil em 1532.
As ruínas do engenho ainda estão lá e é uma das manifestações mais antigas de presença portuguesa aqui no Brasil.

Engenho dos Erasmos
O Engenho São Jorge dos Erasmos foi doado à Universidade de São Paulo em 1958. Localiza-se na divisa entre os municípios de Santos e São Vicente, no estado de São Paulo. É a mais antiga evidência física preservada da colonização portuguesa em território brasileiro.

Então, como falei, existe muito dessa cachaça também curraleira, mais de 40 mil produtores informais, além dos 4 mil produtores formalizados; tem muita cachaça pelo Brasil. E para nos ajudar a mapear, a gente não conseguiria visitar todos esse produtores, né? Então, nós criamos uma ferramenta virtual no site do Mapa da cachaça, onde qualquer pessoa pode entrar seja produtor, seja turista e nos ajudar a mapear esses produtores, colocando as suas histórias, suas fotos, seus métodos de produção.

Por conta dessa ferramenta recebemos um prêmio do Ministério da Cultura em 2012, e depois em 2014 a gente representou a gastronomia brasileira na Copa do Mundo. E isso nos possibilitou a continuar nossas viagens. Então agora vou fazer uma rápida viagem pelo Brasil começando em Paraty, com a Maria Isabel. Ela tem o sítio paradisíaco em Paraty, no qual ela segue as mesmas receitas que os seus antepassados faziam na cidade. Paraty no século 17 teve mais de 100 produtores de cachaça de alambique. É uma região onde a economia era muito efervescente por conta do ciclo do ouro, quando as pedras preciosas escoavam pelo porto de Paraty, inclusive também no ciclo do café, quando os grãos produzidos no Vale do Café Fluminense também escoavam pelo porto de Paraty. Então cachaça em Paraty, até os dias de hoje, é muito reconhecida.

Agora indo pro sul, pro Rio Grande do Sul, Evandro Weber, como o nome já denuncia, ele é de descendência alemã, a família dele produzia Schnapps, na Alemanha, que é uma bebida da batata inglesa, e chegando aqui na serra gaúcha, não tinha batata, mas tinha cana. E eles começaram a fazer uma cachaça chamada Weber Haus e hoje é um dos principais produtores do estado.

Temos também o Nando Chaves, um cara muito gente boa, uma figuraça que está em Coronel Xavier Chaves, próximo de Tiradentes, São João del-Rei, e a família do Nando produz cachaça há mais de 250 anos. A cachaça dele se chama Século XVIII, e é o alambique em atividade mais antigo do Brasil. E quem montou esse alambique foi o irmão do Tiradentes, o herói brasileiro.

Roda dagua coronel xavier chaves
Em Coronel Xavier Chaves está o alambique mais antigo em atividade no Brasil.

Então nós temos uma cachaça feita até o dia de hoje seguindo aquelas técnicas antigas, feita por um descendente de um herói brasileiro. Indo agora pro norte de Minas, na região de Salinas, Roberto Santiago consegue a mesma receita que seu pai inventou na década de 40, quando ele criou a cachaça Anísio Santiago e a Cachaça Havana que é uma cachaça que fez tanto sucesso na região, que condicionou toda uma economia local e fez hoje Salinas ser um dos principais polos de produção de cachaça do Brasil. E uma tendência agora mais recente, a vinda de estrangeiros pro Brasil, pra produzir cachaça.

O Gilles Merlet especialista em conhaque, que trouxe barris de carvalho francês pro Brasil, pra envelhecer cachaça. E uma curiosidade, uma surpresa pra mim em uma das minhas viagens sem querer esbarrei numa família Jannuzzi, produtora de cachaça no interior de São Paulo em Caçapava. Como muitas famílias italianas, eles vieram pro Brasil, aqui pra São Paulo pra produzir café, pra plantar café, mas com a crise de 29, com a queda da bolsa de Nova Iorque, eles deixaram o café de lado e começaram a plantar cana pra usina de açúcar e também pra cachaça.

Então hoje no estado, nós temos os Cembranelli, os Jannuzzi, os Seghezzi, os Campanari, uma série de descendentes italianos produzindo cachaça artesanal. E uma coisa que ao longo dessas viagens, que a gente se perguntava, era por que será que a cachaça produzida em Paraty é tão diferente da cachaça produzida no serrado mineiro, que é tão diferente da cachaça produzida na serra gaúcha?

A gente poderia trazer pra cachaça o conceito que o vinho faz, que o mescal faz por exemplo no México, que é a do “terroir”? A gente se convenceu que sim. E a gente formulou um conceito do que seria esse “terroir” pra cachaça, e passamos a chamar de território, e ele é formado a partir de três pilares.

O primeiro é a questão política, como esse grupo de produtores estão organizados, geralmente fundamentados em algum fator histórico ou fator econômico. Depois a questão física, como é o clima desse lugar? Como são as chuvas? Como é a cana plantada ali? E como isso influencia no sabor da cachaça no final? E por fim, a questão cultural. Quais são os ingredientes que esses produtores usam que tornam aquela cachaça específica daquela região? O que traz essa identidade local? E um dos ingredientes mais interessantes, que nós temos aqui no Brasil são as nossas madeiras.

A cachaça, ao contrário dos outros destilados como o uísque, rum e tequila, ela não envelhece só em carvalho, que é uma madeira do hemisfério norte. Aqui no Brasil a gente envelhece cachaça em madeiras como: amburana, ipê, jequitibá-rosa, jequitibá-branco, bálsamo, cabreúva, eu poderia matar meus nove minutos finais falando de madeira. É muita madeira que a gente usa pra envelhecer cachaça. E cada uma passa uma cor, passa um aroma, passa um sabor pra bebida.

A gente achou isso muito interessante e começamos a levar essas cachaças diferentes pro estúdio e tirar foto pra entender: qual é a cor de uma cachaça envelhecida tanto tempo em cabreúva? Qual é a cor de uma cachaça envelhecida tanto tempo em bálsamo? E fomos criando vocabulário pra entender as cores das madeiras. Aroma e sabor, outra parte fundamental.

Nós criamos, em parceria com a doutora Aline Bortoletto da USP de Piracicaba, uma roda de aromas da cachaça. Já existe roda de cerveja, roda de vinho, por que não criar uma roda de aromas pra uma bebida nossa? E com isso a gente criou uma série de palavras, de aromas, de sensações pra poder descrever essa cachaça que a gente encontrava nas nossas viagens. Então o mapa que começou com taxinhas ali marcando onde estão cada produtor, virou hoje um mapa sensorial do Brasil.

A nossa vontade é hoje destacar isso: a cachaça como um vetor de mostrar os aromas e os sabores brasileiros. Então hoje eu sei dizer que a cachaça do sul, do Rio Grande do Sul da serra gaúcha, ela traz canela, baunilha ela tem uma cor âmbar, por causa de uma madeira chamada amburana, que eles usam lá pra envelhecer a cachaça. Enquanto que em Salinas, eles usam uma madeira chamada bálsamo, que traz uma cor dourada-esverdeada e aroma de anis e de cravo, de erva-doce. E as cachaças são tão diferentes uma da outra, a cachaça do Brejo Paraibano é tão diferente da cachaça do Vale do Paraíba, e da cachaça de Paraty, que elas não são concorrentes. Elas são complementares. Elas fazem parte da paleta de aromas que é o Brasil. E pra gente isso é muito bacana porque a gente consegue valorizar os pequenos produtores.

Explicar porque eles são tão especiais, valorizar as receitas antigas, valorizar os ingredientes novos, que são esses produtos brasileiros, que eu não conhecia antes do Mapa da cachaça. E também uma outra urgência pra poder explicar e contar sobre isso, é que muitas dessas madeiras que nós usamos hoje estão em extinção. Seja por via de extrativismo legal, mas o que a gente não conhece, a gente não valoriza,
e o que a gente não valoriza, a gente perde. Nós estamos perdendo um potencial enorme com esses ingredientes da nossa flora. Então, por exemplo, a amburana está em extinção, a castanheira está em extinção, o amendoim está em extinção, praticamente todas as madeiras hoje, usadas pra envelhecer cachaça, estão correndo o risco de extinção.

E isso me fez pensar, analisando o álcool como vetor pra extrair os perfumes dos botânicos brasileiros, das plantas brasileiras, onde mais a gente podia ir. Caramba a gente está num dos países mais diversos do mundo em termos de flora, né?

O que mais eu posso usar esse tema do Mapa da cachaça pra explorar outras plantas brasileiras, outras sementes, raízes? E hoje a minha motivação é muito essa. Quais são as outras misturas, que nós usamos cachaça, muitas delas até inclusive, com motivações religiosas, motivações medicinais. Toda sexta-feira santa, aqui no interior de São Paulo, nas cidades de Monte Alegre do Sul e Socorro, eles tomam uma mistura de cachaça com guiné e arruda e isso assim, há muitos e muitos anos, pra fechar o corpo contra males físicos e também da alma.

Quem já tomou aqui Cataia? O uísque caiçara. Uma só? Duas, boa! Três. A cataia é uma planta brasileira que também está em extinção a espécie é “drimys brasilienses”, e os índios consomem como se fosse um revigorante natural, e o caiçara desde a década de 80, pelas minhas pesquisas ele pega essa planta e bota na cachaça e chama de uísque caiçara. E uma planta muito interessante, que ela lembra cravo, lembra mate, lá em casa minha esposa não gosta muito, mas eu faço chá, boto no feijão, enfim é uma planta incrível e brasileira e a gente não conhece, e o que a gente não conhece, não valoriza e o que a gente não valoriza, perde.

Alguém já tomou Tiquira? Também? Boa! A Tiquira, é uma aguardente feita da mandioca, que é uma planta brasileira e típica do Maranhão, mas não chega aqui em São Paulo e são poucos produtores formalizados, é uma cultura ainda muito informal, é uma aguardente incrível. Essa que tem o caranguejo dentro nem tanto, mas tem produtores agora fazendo coisas muito legais com essa planta brasileira.

E vamos ver, jambu está na moda. Jambu? Ah, mais gente. Pois é outro ingrediente típico brasileiro, muito comum no Pará, muito comum na gastronomia do Pará, que agora está chegando mais aqui em São Paulo por conta da cachaça. A cachaça como um vetor de extração dos aromas e sabores do nossos botânicos.

E eu particularmente fiquei muito animado quando eu descobri o pacová. O pacová é uma semente que cresce na Mata Atlântica, também está em extinção. Ele é conhecido como o cardamomo brasileiro, mas é muito mais legal que o cardamomo; na boca ele lembra gengibre, cardamomo, mentolado, amadeirado. E fiquei tão louco com esse projeto, com essa semente… que a gente fez um gim, não é uma cachaça é um gim, que traz esse aroma do pacová.

O nosso gim é uma maneira de divulgar esse botânico brasileiro. Tem amigos que a gente está moendo e levando pra temperarem carne, fazerem comida, enfim… Mais uma vez, o álcool como vetor pra mostrar os nossos aromas, os nossos sabores. Inclusive, quando fizemos o nosso gim, foi um projeto que eu fiz com mais três amigos, o Joscha, o Gabriel e o João, a gente não sabia que teríamos tantos desafios. A princípio criamos uma marca de uma bebida, um destilado, mas na real o que a gente está fazendo hoje é criando uma empresa de pacová, porque ninguém vende. E hoje o nosso esforço é também entender como montar uma economia sustentável desse botânico brasileiro. No Brasil a gente está falando de muitas outras possibilidades.

cachaças Maria Izabel

E por fim, tem a Laranjinha Celeste, alguém já bebeu a Laranjinha Celeste? Ah, boa! Laranjinha Celeste eu encontrei um documento histórico lá em Paraty, que data de 1866, no qual a côrte portuguesa pede vários garrafões dessa Laranjinha Celeste. O que é essa bebida? É uma cachaça que os produtores de Paraty colocavam folhas e flores de tangerina na coluna de destilação, e daí os vapores passavam por essas plantas, na hora que ele condensava, fazia uma cachaça meio azulada, com toque cítrico, é incrível. Mas o problema é que a gente não consegue comprar fora de Paraty. A Anvisa não entende esse processo,
que é histórico, que tem documento, não entende, acha que de algum modo vai fazer mal,
então eles não formalizam a produção. Então fica restrita a compra naquela cidade.

O que é uma pena! Pra mim, falar sobre a Laranjinha Celeste, cachaça, tiquira, pacová, cataia é uma maneira de falar sobre o Brasil. E é um Brasil que eu particularmente fico muito animado e gosto muito, que é o Brasil do pequeno produtor, da criatividade do pequeno produtor, é um Brasil da tradição das nossas receitas e o Brasil da inovação que nós mesmos ainda estamos descobrindo. E por muito tempo eu tinha aquela síndrome do vira-lata, e achar que tudo que vem de fora é melhor. E a minha ideia com esse projeto do Mapa da Cachaça e com o Virga e com os outros projetos é mostrar que não, que temos muita coisa bacana no Brasil.

E queria propor um presente pra vocês e também um desafio. Vocês receberam nos seus kits, muitas pessoas curiosas pra saber o que é… Não é ilegal! (Risos) Vocês podem comer, podem tomar. A gente dividiu: um é um saquinho de amburana, que é essa madeira típica pra envelhecer cachaça, e outra é um pedacinho de folha de cataia. Então faço o convite pra vocês chegarem em casa depois
e colocarem na cachaça e extrair um pouco desses aromas e sabores brasileiros.

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