“Se tivermos uma visão generosa da literatura, ela pode realmente dar mais sabor à cachaça que bebemos”, diz Maurício Ayer. Entenda mais a relação da cachaça na literatura brasileira

No ano em que João Cabral de Melo Neto completou o centenário de nascimento, o professor de literatura e especialista em cachaça, Maurício Ayer revisitou a obra poética do autor pernambucano na busca por novas leituras para clássicos como Morte e Vida Severina. O que encontrou não foi surpresa: cachaça e uma afetividade associada à bebida.

A busca pela cachaça literária, que começou em 2013 depois de um curso de sommelier, já mergulhou nos mundos de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos; em grande parte da obra de Cecília Meireles e de Jorge Amado; passeou por José Lins do Rego e Antonio Callado; e tem seguido na direção de outras harmonias, nos versos musicais de compositores brasileiros.

Maurício já perdeu as contas de quantos livros leu na vida, mas tranquiliza os novos leitores ao dizer que “às vezes ler um único livro vale mais que estante inteira”. Nessa entrevista para o Mapa da Cachaça, ele conversou sobre sua trajetória e o papel da literatura na compreensão do lugar da cachaça na cultura brasileira. Também explicou uma divisão curiosa que faz dos autores, sugerindo novos subgrupos literários: os destiladores e os fermentadores.

O que você tinha em mente quando começou a estudar a cachaça na literatura brasileira?

Meu mundo é a literatura e eu já tinha a ideia de escrever sobre cachaça, então fui ver o que existia publicado sobre o tema e não encontrei muita coisa. Então comecei a pesquisar como a cachaça aparecia na literatura e não parei mais, por várias razões. A primeira é que é um prazer imenso, uma alegria, cada vez que pego um novo livro pra ler é um ritual e uma festa. Sempre que descubro alguma coisa nova eu comemoro com cachaça. Depois, eu acho que alguém tem que fazer esse trabalho. Não só eu, evidentemente, tem muita gente pesquisando coisas relacionadas com a cachaça, historiadores, antropólogos, sociólogos, ninguém faz nada sozinho. Nesse contexto, sinto que posso dar uma contribuição, ajudar o Brasil a se conhecer melhor através das cores da cachaça. Tem mais uma coisa: na universidade, eu dou aula de literatura francesa, então essa pesquisa tem sido uma oportunidade de mergulhar na cultura brasileira.

Quantos livros e autores já leu em busca da temática da cachaça, para seu trabalho?

É muito difícil dizer com precisão. A minha resposta mais sincera a essa pergunta é que às vezes ler um único livro vale mais que estante inteira. Posso dar o exemplo de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, do Jorge Amado, que é um livrinho de umas 50 páginas e dá pra passar uma vida descobrindo coisas ali. Se eu fizer uma conta simples, olhando minhas estantes, dá uns 200 livros, mas tem outros que peguei em bibliotecas e que li em formato digital, além de artigos, vídeos, filmes. Esse número também não diz muita coisa, pois tem livros que a gente relê várias vezes e outros que só consulta, tem livro de 100 páginas e livro de 700. Tem também toda a parte das canções, são centenas de horas na internet caçando e ouvindo músicas. E isso é só o começo, ainda tenho muitos universos literários, culturais e históricos a percorrer. Tem muito mais livros me esperando na prateleira do que os que eu já li.

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Em 2005, o escritor Marçal Aquino disse durante uma entrevista que literatura era a “cachaça pessoal” dele. O que a literatura e a cachaça são para você?

Essa fala do Marçal Aquino me lembra de duas coisas. Tem um poema do Drummond muito conhecido em que ele diz: “o verso é minha cachaça”. Eu conhecia o poema e tentava interpretar no seu contexto, até que muito tempo depois encontrei um artigo de jornal do Gilberto Freyre em que ele comenta essa expressão: “tal coisa é minha cachaça”. Segundo ele, isso equivale a dizer “é o meu fraco”, é aquele meu defeito que eu assumo carinhosamente. Sobre a pergunta, diria que a literatura é o mundo onde eu consigo existir. É meio como no filme Avatar, aquela tribo de Pandora que conecta os cabelos com a árvore da vida, eu sinto assim quando entro na minha biblioteca e me sento pra trabalhar, como se meus cabelos se prolongassem até as prateleiras e me reconectassem comigo mesmo, criando redes entre os universos que me interessam. A cachaça é o óleo da máquina, o elixir que me ajuda a encontrar as ligações de tudo com tudo.

Diante da sua experiência, qual a relação da cachaça com a literatura brasileira e como ela é retratada?

Eu gosto de pensar que há dois tipos de escritores, os fermentadores e os destiladores. Os fermentadores são aqueles que extraem de sua vida e de seu meio a matéria-prima de sua literatura, e procuram multiplicar os seus aromas e sabores de maneira extensiva. Um caso bem típico é o José Lins do Rego, conhecido como um memorialista, a prosa dele põe à disposição do leitor toda a riqueza do mundo dos engenhos da Paraíba, que a gente lê como quem bebe várias garrafas, como uma leitura que flui por centenas de páginas. Já os destiladores são aqueles que também retiram da vida sua matéria-prima, só que condensam esse sumo em pequenas doses muito potentes, nos entregam apenas a essência altamente concentrada. É o caso de um João Cabral de Melo Neto, que fala de uma paisagem muito parecida com a de Lins do Rego, mas que nos obriga a parar e atentar a cada verso pra não nos embriagarmos numa densidade brutal. Nos livros “fermentados”, a tendência é que a cachaça apareça como um elemento da vida dos personagens, fala da geografia, do cotidiano, da sociedade. Enquanto isso, nos livros “destilados”, a tendência é que a cachaça tenha um papel diferente, que transcende o seu lugar social e se torna um dispositivo desencadeador de outras dimensões de significação. Aí chega um Guimarães Rosa, que é ao mesmo tempo fermentador e destilador, pois ele nos serve o sertão mineiro numa mesa farta, mas ao mesmo tempo cada palavra contém sentidos altamente concentrados, que abrem para outros universos.

No ano passado você publicou um artigo científico sobre Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, em que o título era “Em busca da aguardente perdida”. O que podemos aprender sobre a cachaça a partir da literatura e como isso pode nos ajudar a compreender melhor nossa história?

O título do meu artigo remete à famosa série de romances do escritor francês Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”. O livro do Graciliano é autobiográfico, conta sua experiência como preso político na época do governo Vargas. O engraçado é que, no começo, quando percebe que vai ser preso, ele até gosta, pois acha que na cadeia vai ter “mais liberdade” pra escrever! Depois, ele se dá conta que não é assim, que a prisão não é como estar isolado de férias, tudo o que não tem ali é solidão e paz. Então ele passa o tempo todo atrás de cachaça contrabandeada pelos carcereiros, pois bebendo ele acha que consegue reviver essa liberdade, como um estado da alma… e assim vive a ilusão de que vai conseguir voltar a escrever.

Cachaça Coqueiro em Paraty

A literatura ensina muito sobre a cachaça. Primeiro porque a literatura nos faz imaginar e reviver uma época, um acontecimento, de maneira mais viva do que muitos livros de história. Claro que a gente não deve simplesmente “acreditar” no que diz um poema ou um romance, como se fosse uma verdade, pois se trata de ficção, então é preciso interpretar, confrontar com outras fontes. Mas a literatura dá muitas pistas e nos ajuda a mergulhar nos diversos contextos. Segundo, porque, para além do seu aspecto “documental”, a literatura é capaz de produzir símbolos que transcendem os seus contextos e nos fazem chegar mais fundo nas coisas que nos constituem. Veja o exemplo do Graciliano: ele mostra em detalhe a vida nas prisões políticas dos anos 1930, é interessante ver como se contrabandeava aguardente pra dentro da cadeia. Mas a presença da cachaça ali vai muito além, faz parte de uma reflexão sobre o papel da imaginação como condição para a liberdade, mesmo em condições de confinamento. Quando não conseguimos mais imaginar, sonhar, aí é que estamos absolutamente aprisionados numa realidade, então a cachaça pode ser um aditivo liberador. Claro que o excesso pode ser igualmente uma prisão, mas a vida é feita de contradições, mesmo.

Finalmente, existe a questão da linguagem. Por exemplo, foi um romance de 1877 do Bernardo Guimarães que me levou a descobrir a principal etimologia da palavra “pinga”. Todo mundo diz que é porque “o alambique pinga”, o que não está excluído, mas pinga, nos séculos XVIII e XIX, era um termo que indicava uma medida, o correspondente a uma dose. Naquela época a pessoa tomava “uma pinga de vinho”, quer dizer, um copo de vinho. Acredito que, como nos armazéns e tabernas o que tinha para vender era cachaça, aos poucos a palavra pinga passou a ser um sinônimo. Isso foi a literatura que ensinou.

Se fosse possível criar uma imagem da cachaça a partir dos escritores contemporâneos, qual imagem você acha que teríamos representada?

É sempre difícil falar de nossos contemporâneos, assim, no calor do momento. Confesso que eu não me sinto em condições de formular qualquer visão de conjunto sobre como a cachaça aparece na literatura que está sendo produzida hoje no Brasil. Daquilo que eu conheço, dá pra ver que a diversidade é enorme. Vou te dar exemplos no universo da canção. A música sertaneja-country fala muito de cachaça, quase sempre associando beber muito com a figura do macho pegador. Tipo Lovenejo do Bruno & Barreto: “Tá querendo um Lovenejo / Gosto de pinga no beijo” e segue afirmando que bebe em grandes quantidades e tem “pegada” com as mulheres. Nisso você não vê nenhuma qualificação da cachaça, pode ser qualquer álcool que dê “bafo de homem”. Em contraposição, tem aquela do Caju & Castanha, O crente e o cachaceiro, eles retratam os dois tipos, um é a pureza religiosa, o outro é a licenciosidade da gandaia, mas aos poucos, na comparação, vai se vendo que o cachaceiro “que tem o vício na mente” muitas vezes é mais verdadeiro, e o crente que é aparentemente todo certinho pode ter um lado hipócrita e corrupto. É muito engraçado e quebra o recalque.

Como um lugar de possibilidade, a literatura poderia impulsionar o perfil da cachaça como bebida virtuosa?

Eu acredito que este não é o papel da literatura. A literatura nos mostra por inteiro, mostra nossos vícios e nossas virtudes, e com a cachaça é a mesma coisa. Então o que esse encontro de literatura e cachaça pode fazer é nos ajudar a conhecer melhor quem nós somos, na nossa complexidade, nas nossas contradições. Conhecer e reconhecer as nossas qualidades e os nossos defeitos pode ajudar a nos tornarmos pessoas melhores, mais honestas com o que somos, mais tolerantes e mais sábias.

Na sua visão, hoje, qual seria o papel da literatura no atual estágio da cachaça?

No atual estágio, eu acho que ainda temos muito o que aprender sobre o lugar da cachaça na cultura brasileira e a literatura pode ajudar muito nesse aprendizado. Se tivermos uma visão generosa da literatura, ela pode realmente dar mais sabor à cachaça que bebemos. Falo de uma visão generosa, porque a gente precisa se esforçar pra falar uma língua que mais pessoas entendam. É claro que sempre vai existir gente que lê Graciliano Ramos em profundidade, esses são meus irmãos existenciais! Mas tem muita gente que não tem a mesma relação com a literatura, que pode se interessar em ter contato com essa riqueza. Então a literatura, a meu ver, deve ser um fator que favorece a cachaça para o lado da degustação qualificada, do prazer refinado e múltiplo, mas sem gourmetização.

Qual o preço que pagamos por não conhecer bem a história da cachaça? Na sua opinião, essa história deveria ser trabalhada de outra forma, pensando na formação crítica de nossos estudantes e por quê?

A gente fala muito que existe preconceito contra a cachaça, mas pouca gente se questiona e vai investigar de onde surge esse preconceito. Fica parecendo que é uma questão de opinião. Eu acho que tem preconceito por causa disso, ou por causa daquilo. Isso não quer dizer nada. Precisa estudar como a cachaça participa da formação ideológica de nossa sociedade e isso só mergulhando na história e na literatura. Se não fizermos isso, acontece o que temos hoje: a cachaça é apagada da escola. Outro dia vi um videozinho mostrando um grupo de crianças de uma escola visitando o museu da cachaça em Salinas, achei muito interessante. Aquilo dá uma dignidade para a cachaça, mostra o papel que ela tem na economia e na cultura local, e as crianças precisam conhecer isso desde uma idade em que começam a compreender o seu lugar no mundo e na história. A cachaça foi um produto importante na economia brasileira durante séculos, como é que podemos ignorar isso?

Aí ficamos rodando em círculos, quando o assunto é cachaça parece que estamos o tempo todo falando as mesmas coisas como se fossem grandes descobertas. Tem pesquisa muito qualificada acontecendo nos departamentos de história das universidades, é só ir atrás.

Em 2018 você ministrou um ciclo de encontros sobre literatura brasileira e cachaça. Teremos outro?

Vamos ter outros cursos sim! Estou aproveitando o período da pandemia pra reorganizar as coisas, e quero muito voltar a compartilhar as coisas que estou pesquisando. O primeiro será um curso sobre a cachaça na música popular brasileira, com foco em alguns compositores cruciais, como Noel Rosa, Ary Barroso, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque e Aldir Blanc. Depois virão outros.

Links:

A pitu do pintor Monteiro: Cachaça e afetividade em João Cabral de Melo Neto

http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/15876/1125613250

Memórias do Cárcere: em busca da aguardente perdida

http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/14561

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