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ResetNinguém se perde na pequena Monte Alegre do Sul (SP). Seguindo qualquer uma das ruas de pedra chega-se à praça central, onde elevada no ponto mais alto e rodeada pelos casarões antigos, fica a Igreja Santuário do Senhor Bom Jesus. Há 72 anos, numa dessas casas de frente ao antigo coreto, a Sexta-feira Santa é dia de acordar bem cedo para preparar o Fecha Corpo. Uma infusão de cachaça com arruda e guiné tomada em jejum e acompanhada por um pãozinho com aliche.
Ainda na madrugada, Maurício Valente vai para o quintal colher as ervas medicinais de gosto e cheiro que acredita-se proteger o corpo contra o mau-olhado e a inveja. Antes dele, o pai e o avô também seguiram a mesma cerimônia sem nunca interromper o costume.
Bem antes de tornar-se a referência da garrafada da Sexta-Feira Santa, José de Oliveira Valente foi funcionário da antiga Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Aos 23 anos, na época da Revolução Constitucionalista de 1932, o jovem telegrafista foi chamado para trabalhar no ramal ferroviário de Tanquinhos, em Piracicaba, no interior de São Paulo.
Na época, toda a região enfrentava uma epidemia de malária e nem o mensageiro foi poupado do infortúnio. Caiu de cama muito doente e mesmo depois de receber tratamento, em Campinas, sentia o mal-estar provocado pelo agravamento da doença.
Ao saber da situação delicada de saúde do rapaz, Benedita, uma escrava alforriada e benzedeira, que trabalhava na casa do chefe da estação, procurou Zezé Valente. Ela trazia consigo a solução para o problema. Tinha a receita que curaria todo o mal.
Nhá Sabá acreditava que o paciente sofria de uma enfermidade espiritual, mais especificamente mal-olhado, e receitou uma mistura de cachaça com arruda e guiné. Nas religiões de matriz africana essas ervas são usadas como proteção contra energias negativas. A bebida deveria ser preparada nas primeiras horas da Sexta-Feira Santa e tomada em jejum, sempre na mesma data, pelo resto da vida.
Quando a saúde melhorou, Zezé estava convencido de que a simpatia fora a responsável pela cura. Como profissão de fé, seguiu com o ritual ano após ano, sem nunca falhar. De volta à cidade natal, de Monte Alegre do Sul, comprou um bar na rua principal e a partir de 1948 passou, também, a oferecer a bebida de forma gratuita aos clientes e amigos que frequentavam o comércio popularizando a tradição.
Seu Zezé morreu aos noventa anos, mas antes pode acompanhar o jubileu do ouro do Fecha Corpo, comemorado em 1999. Mesmo depois de sua partida, a cerimônia continua sendo feita nos mesmos moldes, só que para um público muito maior. “Quando meu avô começou, não tinha esse volume, ele atendia de 20 a 30 pessoas. Hoje, só na nossa casa recebemos mais de 2 mil”, conta Maurício.
O Fecha Corpo faz parte do calendário oficial de eventos de Monte Alegre do Sul. Toda sexta-feira antes da Páscoa, os sete mil habitantes do pequeno município paulista vêem o número de pessoas na cidade dobrar em busca de uma dose do “santo remédio”. Para atender todos os visitantes e peregrinos, além do casarão histórico da família Valente, é possível encontrar a mistura em qualquer alambique da cidade e até levar para casa.
A paulistana Angélica Lotto Cirineu era criança quando começou a frequentar com o pai e as irmãs o Fecha Corpo. “Faz parte da minha memória afetiva. A fila era gigantesca, aguardávamos horas para pegar um copinho. Como na época não podíamos beber, meu pai deixava que molhássemos a ponta do dedo para nos proteger”, lembra.
Hoje, é ela quem ajuda a organizar o evento no alambique da família. Desde que o pai abriu a destilaria Brisa da Serra, há dez anos, nas Mostardas, distrito de Monte Alegre do Sul, a família recebe centenas de viajantes no dia do Fecha Corpo. Com o aumento da procura – quem experimenta a bebida quer levar de presente para parentes e amigos – tiveram a ideia de engarrafar a aguardente composta em miniaturas de 250 ml.
Segundo Angélica, a procura pelo Fecha Corpo tem sido grande, inclusive para envio pelos correios. “Tem muita gente que paga promessa. Outros vêm a pé e de bicicleta de cidades vizinhas. Na região, temos muitos trilheiros. Grupos maiores alugam vans e aproveitam para fazer um roteiro de visita aos alambiques”.
Segundo a tradição, um gole em jejum pela manhã seria o suficiente para garantir proteção contra doenças físicas e espirituais por um ano, até o próximo feriado santo da Paixão. Pelo menos, é o que reza a superstição. Em todos esses anos a prática foi sendo incrementada. Os mais desconfiados preferem repetir a medida, mas nunca em número par. Nesse caso, dizem que as doses devem ser ímpares para garantir a sorte.
No acompanhamento da bebida – e uma tentativa de aplacar o gosto forte e amargo que poucos achariam agradável logo pela manhã – um pão com alichela (famoso antepasto da culinária italiana) também é oferecido. Dentro da tradição católica, a Sexta-Feira Santa é um dia dedicado à abstinência de carne vermelha, por isso o peixe ajuda a forrar o estômago vazio.
A história e cultura do fechamento do corpo remonta a mais de 500 anos, no Brasil, quando religiões africanas e européias sobreviveram à travessia do Atlântico. Hoje, várias cerimônias para fechar o corpo são praticadas pelo país. Lampião e seus cangaceiros recitavam uma oração de corpo-fechado diariamente. O antropólogo Câmara Cascudo descreve em seus livros outros métodos no Sertão que incluíam água e gestos.
Na própria região do Circuito das Águas Paulista, há mais relatos do ritual com cachaça, variando apenas a composição da garrafada. Em Amparo e Socorro, por exemplo, a crença camponesa começava com rezas de recomendação às almas e tinha como ponto alto do período de penitência, a ingestão da aguardente de sete ervas. Além de arruda e guiné, a infusão trazia alecrim, carqueja, alho e cravo.
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