Desde que nasceu, há pouco mais de uma década, a Encantos da Marquesa trabalha com uma filosofia de produção que aposta em cachaças varietais e safradas como forma de destacar características sensoriais, dar profundidade e complexidade para bebidas novas, sem passagem em madeira, portanto dando protagonismo aos sabores da cana-de-açúcar e da fermentação.
A marca foi a primeira a lançar, em 2011, um blend de cachaças brancas produzidas a partir de duas variedades diferentes e regionais de cana-de-açúcar. E busca ampliar o portfólio. Atualmente, três tipos de cana são usados na produção – a java branca, a java amarela e a java preta -, e a intenção é montar um jardim com mais de uma dezena de canas rústicas e regionais.
Dessa forma, além de poder explorar um “universo” de combinações e possibilidades, os produtores ainda contribuem para a preservação da história do destilado, ao guardar a riqueza secular dessas plantas, numa espécie de museu vivo.
A Fazenda Marquesa, em Indaiabira, no norte de Minas Gerais, foi uma grata descoberta para os dois irmãos que são grandes curiosos de tudo o que envolve a terra. Edson é técnico agrícola e inventor, enquanto Eduardo é biólogo e ecologista, ex-presidente do Ibama. Eles procuravam uma propriedade para o desenvolvimento da silvicultura que trabalha com a exploração e manutenção racional das florestas.
Depois de dois longos anos, e prestes a desistirem do projeto, encontraram na microrregião de Salinas – num ambiente de transição entre o Cerrado e a Caatinga – as condições perfeitas para plantar eucalipto e muito mais. A fazenda tinha um alambique em funcionamento e o canavial formado.
A ideia de produzir cachaça inebriou os compradores. “A cachaça nos descobriu, não o contrário”, conta André Gonzales, que é filho de Eduardo, designer e comunicador da Encantos da Marquesa.
Ao valorizar as particularidades de cada cana, a Encantos da Marquesa também valoriza o território (terroir) e suas características regionais. Eduardo lembra que, por séculos, as primeiras mudas trazidas da Ásia foram sendo adaptadas e selecionadas, nas diversas regiões do país; de acordo com as especificidades de cada solo; cada clima; pensando na produtividade e resistência, mas tendo como um dos principais critérios norteadores desse melhoramento, a qualidade expressada na bebida.
E são essas singularidades, resultantes de anos e anos de cruzamentos genéticos, que produtores da Escola Varietal da Cachaça buscam destacar.
Outras marcas que apostam em cachaça varietal, com indicação no rótulo, são as mineiras Fascinação e Tabaroa, e a capixaba Princesa Isabel, produzidas com cana caiana.
Uma cachaça varietal é aquela desenvolvida e produzida a partir de um único tipo de cana-de-açúcar (monovarietal) ou com grande predominância de uma variedade. O objetivo dos produtores é ressaltar características sensoriais de cachaças brancas, sem passagem por madeira. Por isso, geralmente, também distinguem a safra, incluindo nos rótulos o ano em que a cachaça foi produzida.
Atualmente, a legislação brasileira não contempla a definição de cachaça varietal, como ocorre com o vinho. Na área científica, também não existe um consenso sobre o alcance dessa influência. Pesquisas, em andamento, buscam identificar qual o real efeito da matéria-prima e suas variedades para a constituição final do aroma e sabor da cachaça.
Para a Encantos da Marquesa, a cachaça branca pode expressar camadas de sabores diferentes que vão muito além do gosto vegetal de cana fresca. Mais do que uma filosofia de trabalho, a escolha pelo uso de uma variedade em detrimento de outra veio de estudos e muita experimentação.
Antes da primeira cachaça ser lançada, em 2009, a marca testou mais de dez tipos de canas entre variedades comerciais, desenvolvidas em grandes centros de pesquisa, e não-comerciais. Todas seguiram as mesmas condições de produção e foram avaliadas seguindo critérios de produtividade, comportamento na fermentação e qualidade sensorial.
O resultado das análises revelou que as chamadas canas pé-duro produziram uma cachaça de qualidade superior quando comparadas às canas híbridas. Essa diferença também foi percebida por especialistas chamados para degustação às cegas. “Daquele dia em diante, não olhamos mais para as canas de usina”, disse Eduardo.
A cana já tem mais de 30.000 genes identificados, dos quais cerca de 5.000 podem responder a estímulos externos. No colmo da cana existe um diversidade de metabólitos comparável a qualquer matéria prima de outros destilados. Por exemplo, um terço dos metabólitos da uva também estão presentes na cana aos quais se somam outros quarenta. A cachaça branca e pura, base da nossa produção, busca expressar essa diversidade. Por isso, decidimos safrar a Encantos da Marquesa, para captar as variações e as possibilidades ambientais do canavial.
Eduardo Martins
A busca por alta produtividade tem direcionado as pesquisas para o desenvolvimento de plantas mais robustas. Uma cana de alto teor de sacarose vai produzir mais etanol, o que é muito bom para outros setores, mas não é isso o que confere riqueza sensorial para a cachaça, explicam os irmãos.
Descobrir a cana-de-açúcar perfeita para a produção do destilado é só o começo de um longo processo. A qualidade da cachaça depende de uma série de fatores que estão relacionados ao sistema de produção, desde o plantio à higienização do alambique. Trocar um canavial inteiro pode ser muito trabalhoso e caro, por isso, a dica de quem já passou por essa etapa é fazer aos poucos, testando os resultados, provando e registrando a cada ciclo.
Na Encantos da Marquesa, o sistema de produção é sustentável e menos intensivo, sem uso de insumos químicos ou agrotóxicos. O exagero de fertilizantes nitrogenados arrastaria elementos desagradáveis para a bebida. “Nossa fábrica é moderna do ponto de vista da evolução dos processos, mas mantém as características artesanais e de respeito ao meio ambiente”, explica Edson.
Uma das grandes preocupações de quem se dispõe a fazer uma produção orgânica está em como atender às exigências de micronutrientes de um canavial sem fazer uso de produtos químicos. Para resolver o problema, Edson criou um sistema próprio e sustentável de adubação que reduz os custos e o impacto ambiental da fabricação da cachaça.
A mistura reaproveita um dos principais resíduos da indústria da cana, o vinhoto, e incrementa com esterco de vaca e pó de rocha, um remineralizador natural. “Ficamos no norte de Minas Gerais, então a solução mais econômica que encontramos foi forrar o curral com pó de rocha, o gado urinar e estrumar em cima disso durante a safra, que dura três a quatro meses. Assim, temos um produto muito rico”, conta Edson.
As características básicas das rochas ainda neutralizam o vinhoto que é aplicado na formulação do adubo. Os produtores também oferecem as ponteiras da cana-de-açúcar na dieta dos bovinos. Elas são mais ricas em nitrogênio e, portanto, menos interessantes para a produção de cachaça.
Essas são apenas algumas das muitas inovações trazidas pela Encantos da Marquesa que buscam melhorar a qualidade do produto final, e ajudam a destacar a diversidade da cana. Eles ainda usam água da chuva para equilibrar o brix do mosto, pois a água do poço tem muito ferro. Desenvolveram sachês para a preparação do pé-de-cuba, renovam semanalmente as leveduras durante a safra. E, no envelhecimento, criaram, com as Dornas Havana, barris de madeira mista e um novo sistema de soleira, que foi registrado como brasiliensis. Mas isso é assunto para outro texto.
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