Tradição e diversidade são as bandeiras do mexicano Mezcal

  • Publicado 4 anos atrás

Um dos muitos destilados feitos a partir de agave no México, o mezcal conquistou seu espaço pela sua diversidade sensorial, mas sobretudo por suas tradições

É difícil não pensar em tequila — e em alguns porres homéricos relacionados a ela — quando se fala em destilado mexicano. Arriba, abajo, e lá íamos nós mandar mais um gole da bebida adentro em alguma festa por aí. O tequila conquistou o mundo pelas baladas, onde o consumo de bebidas é sempre maior, se popularizou entre os jovens, virou sinônimo de ressaca e passou a ser evitada por alguns pelas fortes lembranças que traz.

colhendo agave
Colhendo agave em Oaxaca

Depois voltou a ganhar respeito com a ascensão da cena de coquetelaria, caindo na graça de bartenders do mundo todo. Mas é inegável que ele se tornou para o México o que a vodka é para a Rússia ou o que a cachaça é (e deveria ser ainda mais…) para o Brasil: seu destilado mais emblemático, uma bandeira para ser tragada no copo.

Mas nesse intervalo de ressaca e ressurgimento, enquanto o tequila tentava recuperar sua reputação de má companhia, ele abriu caminho para que outras bebidas de origem mexicana passassem a ganhar as atenções: sotol, bacanora, sikua e, claro, o mezcal, que logo se tornou um queridinho, uma bebida cultuada por profissionais do ramo e por restaurantes e bares modernos nas maiores capitais do mundo. Conquistou lugar cativo nos coquetéis, passou a frequentar as cartas de bebidas e incentivou, quem diria, a abertura de casas especializadas (as mezcalerias) pela primeira vez fora do México — uma febre nos EUA, por exemplo.

“O mezcal está alinhado a tendências de consumo que hoje passaram a ser mais valorizadas no mercado: é um produto que tem uma origem forte, uma geografia particular aliada a processos ancestrais de produção e, sobretudo, vinculado a povos originários de México, o que fez dele um produto muito atrativo”,

afirma Iván Saldaña, fundador do Montelobos Mezcal Joven.

Ao contrário do tequila, que é apenas destilado de um tipo de agave, o azul, o mezcal é um espírito que pode ser produzido a partir de uma variedade de agaves como Espadin, Tobala e Madre Cuixtle. Seu sabor defumado e característico vem do seu processo de produção, no qual o coração da planta, conhecido como piña, é assado debaixo da terra, esmagado e depois deixado para fermentar com água em um barril. Em seguida, o líquido é destilado antes de ser engarrafado ou envelhecido em barril.

cozinha agave para mezcal
Cozinhando a piña do agave, processo típico da produção do mezcal

“Pelo seu uso mais liberal de diferentes espécies de agave, o destilado desenvolveu uma gama de sabores muito mais distintos que a tequila. Como resultado, o mezcal talvez personifique o espírito de terroir como nenhum outro destilado”, afirmam Joel Harrison e Neil Ridley, autores do livro Distilled. O mezcal só pode ser produzido em alguns estados do México, como Tamaulipas, Durango, Guerrero, Michoacán e Oaxaca, sendo esse último o mais tradicional.

Saldaña, que é também um dos maiores especialistas de agave no mundo, Ph.D. da Universidade de Sussex, na Grã-Bretanha, explica que a bebida tem uma complexidade sensorial extraordinária, que o permite ser muito versátil, principalmente para fazer coquetéis. “É uma complexidade sensorial que não tem em nenhum outro destilado branco do planeta”, ele explica.

Esse também foi, segundo ele, um dos principais fatores de disseminação do mezcal no mundo. Vivemos uma era do paladar mais desenvolvido por parte dos consumidores, que se tornaram mais exigentes, mas também mais aptos a apreciar notas sensoriais mais complexas. A tequila, no México, sempre foi considerada um tipo de mezcal mais suave. “Hoje há um entendimento de que o mezcal e a tequila são bebidas muito distintas, mas antes não era assim”, ele diz.

Para o produtor e especialista, o mezcal ascendeu em um momento em que há muito mais cultura sobre o que comer e beber, quando as pessoas estão mais preocupadas com isso. “No México, por exemplo, era impossível sair para comer alta cozinha mexicana há mais de 15, 20 anos anos. Havia fondas, restaurantes mais baratos. Não havia uma nenhum tipo de apreciação de pagar por um jantar formal com comida mexicana. O mesmo se passou com as bebidas, hoje há uma busca por autenticidade, por sabores, e experiências novas. E o mezcal chega para atender a tudo isso”, Saldaña defende.

As pessoas esperam, ao comer e beber, que possam ser transportadas a lugares ou experiências mais autênticas — que aquilo que consomem tragam um pouco de geografia, de contexto histórico. “O mezcal oferece uma herança, um patrimônio biológico, por conta das plantas com que e feito, e cultural, pela história que lhe dá vida”, ele garante. Saldaña começou a destilar por meio da biologia molecular de plantas. Além do Montelobos, ele desenvolveu com mais dois especialistas uma receita da década de 1920 para criar o Ancho Reyes, uma especie de licor especiado feito a partir de chillis autóctones da região de Puebla.

Para ele, a fama do mezcal vem principalmente dessa tradição que remonta antes mesmo da chegada dos colonizadores espanhóis, de seu espírito rústico galgado em formas de produção primitivas. Embora já há quem cozinhe a piña em vapor ou em água — deixando para trás a forma artesanal de cavar um buraco no solo e deixar o coração da planta cozinhar lentamente ali nas brasas —, ele diz a modernização do mezcal é boa para o desenvolvimento da própria bebida, mas que é importante ter sempre os olhos na herança da bebida no passado.

“Nós que estamos no negócio de produzir mezcal sabemos que a bebida tem passado por uma grande mudança, que por uma lado é maravilhosa, de reconhecimento em nível mundial, que permite oportunidades de desenvolvimento únicas para o México e das diferentes regiões onde ele é produzido”, diz. Mas salienta que o descobrimento da bebida pelo mundo tem alguns desafios: escalar uma bebida que é tradicionalmente feita de forma tão artesanal, em produções tão pequenas, pode nem sempre resultar bem.

destilação de mezcal
A produção de mezcal, assim como a cachaça de alambique, é tradicional e muito artesanal

“Uma das coisas mais importantes é respeitar os processos artesanais, a tradição de como a bebida surgiu e é ainda feita. Respeitar também os impactos biológicos que podem ocorrer no aumento de produção, tanto no uso de plantas silvestres quando no uso de recursos naturais, como água e a madeira, que podem estar limitadas em algumas regiões”, ele ressalta. Se não houver uma preocupação nesse quesito, a produção da bebida pode levar a um empobrecimento dos solos ou gerar situações injustas para regiões que por décadas fizeram seu mezcal. A produção a Montelobos é toda orgânica, ele diz: “o agave é uma planta muito adequada à atual realidade mundial e principalmente mexicana, pois pode ser produzida em terras desérticas, com solo muito pobre, e com ótima resistência a enfermidades, sem necessidade do uso de defensivos”, explica.

Embora fique feliz com o novo papel que o mezcal conquistou no mundo, de competições de coquetelaria a bares do mundo todo, Saldaña tem certo receio de que a demanda, a entrada de novos empresários no mercado e uma gana de abraçar a tendência que a bebida criou possam acarretar em uma perda da história da bebida.

“Temos visto perfis mais modernos, em termos sensoriais também. E nesse sentido, promovem uma proposta mais moderna de mezcal que, apesar de interessante e em alguns níveis positivo, não pode nos fazer abandonar o gosto tradicional da bebida. Há uma grande quantidade de cultura por trás dos perfis de sabores que historicamente foram sendo consumidos por pequenas comunidades até a bebida que temos hoje”, ele diz. “É preciso cuidar para que suas expressões, seu sabor histórico e seus perfis sensoriais se mantenham”. Do contrario, o mezcal pode se descaracterizar. E aí, quem sabe, perder o seu maior encanto.

Fotos: Agencias & fotógrafos de Montelobos

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