Cachaça Tucaninha de São João Batista do Gloria

  • Publicado 12 anos atrás

Gilberto Godinho ex-produtor da cachaça mineira Tucaninha de São João Batista do Glória

Em 2003 ou 2004, logo no início de seu mandato, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva se dirigiu a Passos para visita política. Em sua recepção, os habitantes da cidade do sudoeste do estado de Minas decidiram agradar Lula com uma cachaça artesanal da região, de São João Batista do Glória: a Tucaninha. Na ocasião, o presidente experimentou o produto e, em tom de brincadeira, interrogou.

– Poxa, pessoal. A cachaça é ótima. Mas precisava ser bem um tucano?

A brincadeira ainda é motivo de risos na boca de Gilberto Godinho, ex-produtor da cachaça Tucaninha e da pinga (ou aguardente) Tucana. Ex, porque pararam de produzí-la em 2009. Estamos na casa de Gilberto, no andar subsolo, sentados à mesa de grossa madeira, cercados de garrafas de cachaças e pingas de todos os cantos do país. Ao nosso lado, um barzinho de madeira com bancos altos, receptivos. À minha frente, uma grande janela que escancara uma paisagem de enormes terrenos verdes, onde antes eram as plantações de cana-de-açúcar da família Godinho. Ex-prefeito do Glória, produtor leiteiro, artista plástico e amante da cachacinha brasileira, Gilberto é homem multimídia, mesmo antes dessa palavra ser tão utilizada. Nas horas vagas, ele cria móveis – como fizera para sua casa atual, toda trabalhada em madeira de uma antiga fazenda. Gilberto conta que até peças de carros de boi foram usados para construir bancos, sofás, baús e outros móveis. Além disso, pinta quadros, hobby que ultimamente anda parado. A “alma de artista” está em todos os cantos de sua casa, especialmente nessa área “da cachaça”. Por toda a parede da escadaria, até a sala onde estamos, há mensagens de giz e caneta de vários amigos que passaram por lá. São centenas delas. Gilberto sorri.

– É, isso daqui é arte e amor dos amigos que vêm me visitar. Quando inaugurei minha casa, fiz uma festa… A maioria das assinaturas foi deixada naquela ocasião. Mas sempre tem gente vindo bater um papinho, comer uma coisinha e tomar uma dosinha.

A história da cachaça tem início com a história do Brasil, com as primeiras plantações de cana-de-açúcar feita pelos portugueses. Durante os séculos XV e XVI, o açúcar era produto precioso, na época diziam que era “caro como jóia e raro como justiça”. A cana teve importância no país com Martin Afonso de Souza que, em 1530, construiu o primeiro engenho brasileiro no Rio da Prata. Depois disso, a produção se espalhou pelo país, especialmente no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Nesses engenhos – não se sabe se em São Vicente (SP) ou na Bahia –, surgiu a cachaça. Alessandra Garcia Trindade descreve o fato em seu livro Cachaça, um amor brasileiro: “nos engenhos de açúcar, durante a fervura da garapa, surgia uma espuma que era retirada e jogada nos cochos para servir de alimento aos animais. Dentro desses cochos, o produto fermentava e transformava-se num caldo que parecia revigorar os animais. Os escravos, vendo os animais consumirem aquele caldo, decidiram experimentá-lo. Gostaram tanto que passaram a consumi-lo com frequência”.

Alambique da Cachaça Tucaninha em Minas Gerais

Amante do produto, Gilberto gosta de provar diferentes tipos de cachaça* e é presenteado por amigos e parentes quando estes visitam cidades produtoras. Apesar de tamanha coleção, Gilberto acredita que seu pai, Osvaldo Ferreira Godinho, era ainda mais fã do produto.

– O papai adorava tomar um golinho de cachaça. Mas das boas. A nossa ligação com o produto vem dele, aliás. Foi ele quem começou com a história do nosso alambique.

Osvaldo e mais dois irmãos, Wellington e Alfredo, eram proprietários de uma fábrica de cerâmica (produção comum na cidade do Glória até hoje) chamada Cerâmica Rio Grande. Os três produziam tijolos, lajotas, manilhas e telhas e, seguindo a tradição familiar, iam bem nos negócios. Porém, Osvaldo, que apesar de não ter nem ensino fundamental, tinha uma visão empresarial e sonhava em mexer com agronegócios e construir um alambique para a produção de sua própria cachaça. Ele não se imaginava na indústria de cerâmica para o resto de sua vida. Nos anos de 1970, Osvaldo vendeu sua parte da sociedade na fábrica para seu irmão, Tertuliano, e conseguiu, com esse dinheiro, comprar terras localizadas na entrada da cidadezinha.

– Nessas terras, meu pai criava três vacas. Era tudo o que a gente tinha no começo. A gente brincava que era nosso grande curral de três, ri Gilberto.

Seis anos depois, em 1976, Osvaldo comprou outra fazenda, onde atualmente funciona a produção leiteira Tucaninha. Naquele ano, o empresário começou seus negócios de leite com mais força, com maior quantidade de gado e, consequentemente, com maior produção.

– O negócio do leite tem que ser bem feito. Porque é preciso a qualidade e a quantidade. Então você tem que cuidar de todos os mínimos detalhes. Nessa época, papai plantava cana na primeira fazenda que comprou, na entrada da cidade, e criava gado na outra, na saída para Delfinópolis. Sempre com a ajuda de meus irmãos, para dar conta do recado. Mas ele sempre foi muito detalhista, atencioso e tinha um feeling para negócios. Andava sempre com um bloco de notas e um toco de lápis no bolso. Anotava tudo. Ele só estava esperando o momento para que houvesse sobra da cana e ele pudesse, finalmente, abrir um alambique.

O estado de Minas Gerais é hoje, segundo dados do IBGE 2008, é a maior bacia leiteira e o maior produtor de queijo do Brasil, com uma produção média de 7.265 litros de leite por ano (377 litros por habitante).
A oportunidade veio em 1989, quando alugou, por dois ou três anos, o alambique de José Délio, produtor da cachaça Gloriense.

– Papai alugou o alambique para conseguir utilizar uma safra da nossa cana. Mas no segundo ano de aluguel, já começou a construir o nosso próprio alambique, com todas as condições preestabelecidas pelo Governo e, então, poder fabricar com a nossa marca. Foi aí que nasceu a Tucaninha.

O pai iniciou os negócios nos anos 90 junto dos filhos Leandro, responsável pela produção da cachaça, Manuel, quem cuidava da lavoura e da produção de leite, e de Flávio, que fazia as manutenções dos equipamentos. Nas terras da família, plantavam de 35 a 45 alqueires de cana. Plantação que rendia de 450 a 550 mil litros por safra (anual). Gilberto explica que, como a produção da cachaça artesanal é demorada, levando cerca de 3 anos para poder chegar ao comércio, eles produziam a Tucana, pinga industrial que garantia uma renda suficiente para pagar as despesas da Tucaninha.

– Existe uma grande diferença de produção que se reflete na quantidade e qualidade entre a cachaça e a pinga. A comercial, que é a industrializada, nós aproveitamos e misturamos na composição desde o restilo da cana, que é o que chamamos de “cabeça”, mais fraquinha, com 13,5% de álcool, aproximadamente; e usamos, até mesmo, a “calda”, que tem a maior porcentagem de álcool. Já na cachaça, a gente vai usar apenas o “coração”, ou seja, a melhor parte da cana. Em nossa cachaça, a porcentagem de álcool era de 40% em 18, 19 graus.

Gilberto diz que seu alambique era inoxidável e suportava 3 mil litros de garapa, produzindo cerca de 420 mil litros de pinga. Já o alambique da cachaça, com os mesmos 3 mil litros, produzia de 120 a 150 litros, mostrando a enorme diferença de quantidade e rentabilidade entre os produtos. É o preço da qualidade. Por causa disso, a Tucaninha não era produzida todo ano, já que ficava envelhecendo por, no mínimo, três anos nos tonéis de carvalho. E quando produzida, era em pequena quantidade. Já a Tucana era produzida todos os anos e ficava em vasilhames de vidro ou de jequitibá, sendo comercializada a granel por bares e botecos do Glória e região.

Importante e reconhecida cidade produtora de cachaça, Parati tinha fama pela qualidade de seus produtos; tanto era assim que “Paraty” já foi sinônimo de cachaça. Com a construção da Estrada Real, ou Caminho Velho, para as buscas de ouro em Minas Gerais, a cachaça de Parati era transportada por essa estrada em tonéis de madeira. Dessa maneira, o envelhecimento da cachaça começou a ser apreciado, considerado como um diferencial; muitos acreditam que essa tradição tenha nascido nesse transporte na Estrada Real.

– A nossa cachaça especial não era fabricada todo ano, porque rendia menos. A safra de 1999, por exemplo, deve ter rendido uns 20, 27 mil litros. A maior safra foi em 2004 com aproximadamente 40, 42 mil litros. Mas a gente tinha que regular a produção, porque você tem que ter uma demanda muito grande para o envelhecimento da safra. Cada uma dessas safras fica de três a cinco anos envelhecendo nos tonéis. Então, a produção e a venda da Tucana tinham que nos recompensar isso.

O alambique da família Godinho tinha seiscentos tonéis de 250 litros reservados para a Tucaninha. Gilberto lembra que todos eles eram de carvalho, o mesmo tipo de madeira utilizado no envelhecimento do uísque. Aliás, muitos produtores brasileiros importam os tonéis da Escócia. O ex-produtor considera os tonéis mais novos de carvalho melhores, já que dão um sabor e uma cor melhor ao produto.

– É bom se preocupar com a idade dos tonéis. Os mais velhos não passam aquela coloração amarelada, e mesmo o cheirinho de caramelo da resina do carvalho*. Quando é mais novo, ele passa aquele aroma, aquele sabor que aproxima muito a cachaça de um bom uísque, diferenciando apenas no teor alcoólico. Na qualidade da bebida, o envelhecimento não tem de ultrapassar 5 anos, até mesmo porque a cachaça fica avermelhada quando isso acontece.

Converso com ele sobre alguns problemas apresentados na cachaça, que podem acontecer durante sua produção, como a acidez do produto. Gilberto me olha atentamente. Responde de forma enfática.

– Veja bem, a acidez advém da qualidade da cana. Começa desde o tipo de cana e solo que você utiliza, refletindo na fermentação e na destilação. O que importa é caprichar na fermentação – mesmo que seja mais demorada, chegando a 30 horas. A fermentação da cachaça necessita de cuidados. Nós usávamos o amido de milho e sempre deixávamos, pelo menos, o produto fermentando por 27 horas. Mas ia até 35, 37 horas. Depois dessa fase, você tem que administrar a destilagem. Então, se a cachaça parece ácida significa que ela passou por uma fermentação rápida.

Segundo ele, toda cachaça tem a coloração branca quando sai da fermentação e destilação. Só depois de seu envelhecimento é que adquire uma coloração amarelada, graças à madeira. Mas não é só pela cor que se diferencia um produto de outro. Gilberto fala sobre as diversas formas de apreciação da cachaça. Me conta algumas maneiras de diferenciar uma boa de uma ruim, uma bem encorpada de uma pinga industrial.

– Primeiramente, você vê a diferença quando coloca um pouco do produto na parte inferior da língua; se você sentir a sensação de dormência, o teor de álcool é muito alto e a boa cachaça não pode causar esse efeito. Outra coisa que as pessoas fazem, mas que é mito, é chacoalhar a garrafa e esperar o chamado Rosário subir para o topo da garrafa. Esse processo das bolinhas subirem não é sinal de qualidade; o que acontece é que, se você chacoalhar uma boa cachaça, bem encorpada, as bolhinhas sobem mais lentamente; o tempo da subida dessas bolhas é que faz alguma diferença. Outra opção é colocar uma dose de cachaça num copo e rodá-lo na vertical, como se você estivesse rodando uma xícara de café, para esfriá-lo. Depois que você volta o copo para a posição normal, a bebida deve criar uma gordura… Deve deixar um rastro com essa aparência de gordura que significará que é uma bebida encorpada. Agora, se a bebida descer rapidamente, o volume de álcool é acentuado.

Gilberto afirma que suas cachaças são encorpadas e que, um grande amigo, especialista em uísque e água, em certa ocasião, comparou a Tucaninha a um uísque de 15 a 18 anos.

– A cachaça, desde a época dos escravos, quando foi descoberta pelos negros africanos no país nos cochos das fazendas, vem carregando um título de algo negativo, de bebida das pessoas preguiçosas e que não querem trabalhar. Mas toda essa imagem foi criada inicialmente pelos senhores de engenho, que, aliás, eram também consumidores do produto. Eles diziam que os seus escravos estavam bêbados, que não queriam saber de trabalhar. A associação com esse tipo de personalidade começa já aí. Esse retrato do cara que bebe pinga, do “pinguço”, rondou a história da cachaça desde o século XIX. Ainda hoje, é sempre ligada à ideia do viciado, morador de rua. É o retrato da diferença social, dos problemas sociais que temos. Mas acho que essa imagem está sendo desmistificada. O brasileiro tem de conhecer a história da cachaça, tem que saber valorizar um produto tão nosso, tão importante para nossa cultura.

Ele pensa que a cachaça vem sendo mais consumida nos últimos anos, por causa da valorização do produto tipicamente nacional. E acredita que, aos poucos, o brasileiro está perdendo a vergonha de assumir a cachaça como um produto enraizado na tradição do país. Gilberto lembra que a cachaça é sempre um bom pedido para acompanhamento de um delicioso prato à moda de Minas.

– Na década de 80 existiu um movimento feito por governadores de Minas Gerais para a mobilização organizada de valorização dos produtos estaduais. Fizeram um trabalho forte em cima disso. Hoje, valorizam-se mais o artesanato e o turismo. Não se fala muito na comida e na cachaça. Mas muitas pessoas aprenderam a apreciar esses produtos. Os adoradores de cachaça tomam-na para curtir uma roda de papo, a companhia dos amigos, a reunião daqueles que quer bem… Apreciam a cachaça pelo seu sabor, e não para ficarem bêbados.

Gilberto destaca também a iniciativa do presidente Lula em colocar, nas recepções de seu governo, a cachaça como produto nacional. E mais uma vez, a Tucaninha tem história com o ex-presidente.

-A mando de Lula, quatro cachaças brasileiras foram selecionadas para essas recepções. Eles numeraram os produtos e fizeram uma seleção profissional de quatro tipos. As duas produções de nossa família, tanto a Tucana quanto a Tucaninha, foram selecionadas. Já imaginou? Duas das quatro cachaças selecionadas pelo Governo são de nossos alambiques. As outras duas, uma é de Araxá e a outra do Rio de Janeiro; ou seja, três de quatro escolhidas são de nosso estado. É motivo de orgulho, não é? E sabe, acho que ainda tem cachaça nossa por lá, viu?

E tal reconhecimento não ficou só no Planalto Central. A cachaça da família Godinho era vendida em todos os estados brasileiros. Além disso, era exportada (em pequena quantidade) para países da Europa como França, Inglaterra, Portugal e, principalmente, Alemanha. Países asiáticos também faziam encomendas do produto. Gilberto lembra que seu exportador, xará do pai, o Osvaldo da exportadora Savana, trabalhou com sua família do começo ao fim do negócio. Ele levava sua cachaça para todos os cantos do país e, com seus contatos lá fora, conseguia exportar dúzias de cachaça.

– As pessoas não têm noção do quanto é caro e complicado se exportar produtos alimentícios para outros países. Primeiro, porque é tudo por conta do produtor. Segundo, porque cobram mil taxas. E terceiro, porque são super rigorosos com a composição dos alimentos. A cachaça é muito analisada, tanto antes de sair do país, quanto depois, no destino. Eles olham tudo. Se tiver 0,00001% de diferença na taxa de cobre, por exemplo, enviam os contêineres de volta – e por conta do produtor! Ou jogam tudo fora… No Brasil, hoje, acredito que apenas seis ou sete marcas de cachaça conseguem exportar milhões de litros; entre elas estão a Pirassununga, a Ypióca e a 61. E é assim, eles mandam até 15 milhões de litros por vez! Nós mandávamos algumas dúzias apenas.

O número das empresas que conseguem tamanha exportação é quase nulo se pensarmos que hoje, só em Minas Gerais, é calculado um número de oito mil e quinhentos alambiques. Gilberto enfatiza que a existência de tantos produtores mineiros se deve, especialmente, ao “boom dos anos 90”, quando o Governo lançou fortes propagandas de incentivo e valorização da culinária e artesanatos regionais. Em parceria com o Sebrae, o governo do estado de Minas garantiu incentivos financeiros a novos produtores. Com isso, criou-se uma ilusão generalizada sobre a produção de alambique, o que foi, aos poucos, sendo relativizada pelos novos produtores. A exigência financeira e de recursos é alta, principalmente no começo desse negócio.

– O Sebrae e o Governo facilitavam o caminho. Mas, ao iniciar o negócio, o produtor deparava com a realidade difícil para criar o canavial, para manter uma série de fatores que são exigidos na qualidade da cachaça. O produtor vê como é trabalhoso lidar com tantas regras. Outro problema é a manutenção da quantidade, porque, se você não tem uma quantidade média, pelo menos, a sua produção vai ser de quintal. Você só vai vender para seus vizinhos, ou no máximo, para a cidade vizinha. Para ter um alambique em condições de produção média ou alta é estritamente importante uma estrutura financeira enorme! Mas os detalhes e as dificuldades não aparecem na propaganda, não apareceram naquela época. Eles não especificavam, não alertavam o custo de estoque, do vasilhame… Então, tentava-se até cinco anos, e é aí muita gente desistiu. Se você vai insistir sem lucro, apenas por hobby, precisa ter uma fonte financeira em outro setor.

Até a década de 1980, a fabricação de cachaça era um fator de herança, as técnicas eram somente passadas de pai para filho. Após esse período houve uma disseminação e criação de associações de produtores com incentivos governamentais. Tal movimento gerou mais seriedade ao tema, sendo que na cidade de Salinas já abriram um curso de nível superior de três anos, no qual os alunos aprenderão como se produzir cachaça de alambique.

Pergunto a Gilberto se é comum encontrarmos grandes produtores que não conseguem lucros no mercado da cachaça.

– Sim, temos alguns… A Sagatiba, por exemplo, não tem lucros com a cachaça, o foco dela são outros setores. A cachaça é uma das diversificações. Aproveitam a marca e compram a bebida de outros produtores, como o Antônio Carlos Pereira, do Carmo do Rio Claro. Ele faz cerca de 50 mil litros por ano, sendo 25 mil vendidos para a Sagatiba. Eles têm um contrato. E assim vai.

O grande problema gerado pelo aumento da produção de pinga e cachaça pelo país foi a “prostituição” de antigas marcas artesanais, nas palavras de Gilberto. Ele destaca esse movimento dos anos 90 como um grande incentivador do uso de álcool e pingas industriais na mistura de produtos, que se dizem artesanais em seus rótulos. Ou seja, muitas cachaças que iniciaram nos anos 70 e 80 como produtos de qualidade, começaram a “batizar” seus produtos, ou até mesmo, modificar sua fabricação, para poder disputar o mercado concorrido depois da década de 90.

Gilberto cita algumas marcas conhecidas da cidade de Salinas (reconhecida em todo o Brasil como produtora das melhores cachaças do país). De acordo com ele, muitas começaram a comprar álcool da cidade de Sertãozinho e misturam-no com água, chegando ao nível alcoólico permitido da bebida (de 39 a 42 graus).

– É uma grande desonestidade com o consumidor que compra um produto de marca reconhecida achando que está tomando uma cachaça artesanal e, na verdade, está bebendo uma mistura de álcool e água, ingerindo pinga das ruins! Em Passos mesmo, eu conheço gente que trabalha só com isso, transportando álcool de Sertãozinho para Salinas, Araxá em caminhões de tanques inoxidáveis… É chato falar disso, mas é grande o número de produtos que sofrem essa prostituição.

Algumas marcas de pingas conhecidas nacionalmente possuem, em seu rótulo, o título de cachaça, mesmo não sendo. Uma famosa é a 61. Para ser considerada cachaça, a bebida precisa passar pelo processo demorado e artesanal que ele explicou: fermentação mais longa, destilação em alambique – e não em colunas, feita nas industrializadas – e envelhecimento em tonéis de madeira especial e diferenciada, como a de carvalho. Outra diferença está no volume produzido, que pode ser de até 800 litros. Na cidade de Salinas, há hoje curso superior para a formação de especialistas e produtores de cachaça de alambique. Cito este acontecimento que deu possibilidade do estudo para a técnica de produção (existente há mais de dois séculos no país) e pergunto a Gilberto se somente técnica faz a cachaça. O que ele responde sem hesitar.

– De maneira nenhuma. Como em qualquer profissão do mundo, a técnica ajuda, dá uma base essencial para o profissional da área, mas não traz o amor e a satisfação com o que se faz. Não te dá um diferencial. Para fazer cachaça é preciso três qualidades, além de técnica. Primeiramente, você precisa conhecer, gostar e admirar a cachaça. Conhecer as suas variáveis. Saber que tem algumas do tipo “tibórnia”, como meu pai falava, que são as de péssima qualidade. Em segundo lugar, é necessária uma estrutura financeira para você estar preparado para qualquer imprevisto; essa característica é muito importante, ainda mais com essa concorrência prostituída. Você tem que ter grana para segurar o tempo do envelhecimento da cachaça. E em terceiro lugar, você precisa ter disposição, além do dinheiro, para participar de feiras, exposições e viagens. Financeiramente, elas têm um custo de investimento que quase nunca têm retorno. O mercado artesanal é complicado, mas você tem que participar disso, tem que mostrar seu produto para outras pessoas que também trabalham na área. Você tem que expor para quem está interessado em conhecer isso.

Gilberto conta que sua família levou a Tucaninha durante muitos anos na Expocachaça de Belo Horizonte, entre outras. Segundo ele, somente grandes produtores artesanais ganham incentivos financeiros do Governo, ou têm patrocinadores, arrecadando recursos para enviar seus produtos a tais eventos. O resto dos produtores paga para participarem. E o custo é alto.
Apesar das dificuldades, o ex-produtor acredita ter valido a pena todo o trabalho. Ele se levanta, pega uma caixa de papelão, juntamente com alguns marca-páginas. Esses são a embalagem da Tucaninha e os “milheiros” que vinham junto de cada garrafa; as ilustrações foram feitas por crianças da APAE e da Associação das Mulheres da cidade do Glória. Tudo artesanal, desde a cachaça à sua embalagem.

– Desde que entrei para o negócio, em outubro de 2006, logo depois da morte de meu pai, comecei esse trabalho lindo. Cada embalagem é única, cada produto é exclusivo. Eu guardo tudo isso com muito carinho e valorizo essa característica da Tucaninha.

Além de cultural, símbolo da culinária brasileira e mineira, a cachaça da família de Gilberto também tinha um trabalho social. Nessa hora, Gilberto me mostra os detalhes, sorrindo para alguns sóis e arco-íris que vão aparecendo.

-Olha só que coisa! As crianças fizeram desenhos lindos… Um capricho só, não é?

Certa nostalgia, ou algo parecido com isso, aparece no ambiente como um vulto. Entro no assunto mais chato do dia: o fim da produção de seu alambique. O motivo é financeiro, uma dívida de 280 mil reais.
No livro Cachaça, um amor brasileiro, a autora lembra a participação feminina no fabrico da cachaça: Há quem pense que o universo da cachaça seja exclusivo dos homens. No entanto, a verdade é que as mulheres têm presença importante na história dessa bebida. (…) O toque feminino também esteve presente na produção industrial da cachaça. Foi o caso de Eugenia Menescal Campos, mulher de Dario Borges Telles, o cearense que, com apenas 16 anos, tornou-se o responsável pela produção da cachaça do Sítio Ypióca. Dona Eugenia, criadora do rótulo, se tornaria responsável pela fazenda após a morte prematura do marido, com apenas 31 anos de idade. Além da fibra de mulher nordestina, Dona Eugenia possuía uma fé inabalável. Tanto que chegou a fazer uma promessa a Santo Antônio para que os repetidos incêndios nos canaviais da região cessassem. Em troca do pedido, ofereceu o sino da torre da Casa Grande para a Capela de Santo Antônio do Pitaguari. Desde então, dizem que os incêndios nunca mais voltaram por aquelas terras.

O motivo da dívida da Tucaninha foram as queimadas nos canaviais da família por duas ou três safras consecutivas (Gilberto não se lembra mais). Depois das incontroláveis queimadas e da falta de condição financeira da família, os irmãos Godinho decidiram encerrar a produção de seu alambique e, infelizmente, fechar a marca criada pelo pai. Era o fim da cachaça e de um sonho. Gilberto estava há três anos no negócio, era responsável pela comercialização dos produtos, e não se conformava com o fim da sociedade entre os irmãos, tentando achar outras formas de solucionar o problema.

– Hoje eu engulo um pouco melhor, estou conformado. Mas na época, eu não aceitava a ideia de encerrarmos a marca, de não vendermos mais nossa cachaça. Só que os prejuízos que nós tivemos, não só psicológicos e morais, mas financeiros também, foram enormes. Não podíamos arriscar mais uma safra e perder ainda mais dinheiro. Seria cavar um buraco que já estava grande.

Os irmãos desativaram a empresa que tinha 20 anos, em 2009. Gilberto está agitado, fala rapidamente. Ele olha fixo para mim, olha para suas mãos e retorna para mim, que tenho um grande “por quê?” na boca.

-No nosso caso, as queimadas foram criminosas. A nossa família enfrenta problemas aqui no Glória… É uma perseguição política, aversão de algumas pessoas que não se conformam com nossa influência política e nossa quantidade de bens. É tipo uma inveja, sabe? A gente trabalha muito para o bem da comunidade, para nossos empregados,; tanto para os trinta e cinco que trabalhavam durante a safra e na produção da cachaça, quanto daqueles que cuidam de nosso gado, que trabalham na produção do leite. Mas, nem sempre, o que fazemos é interpretado dessa forma. Já nos acusaram de trabalho escravo, imagine só!

Ele e os irmãos se reúnem todos os finais de semana para discutirem problemas e possíveis soluções dos negócios. Hábito deixado pelo pai, Osvaldo, que fazia questão de sentar com os filhos e discutir detalhes da produção. Com isso, gastam horas discutindo ideias novas para a melhoria da qualidade do trabalho e da qualificação dos funcionários.

-A gente aprendeu a ser rigoroso e detalhista com meu pai, seu bloquinho e seu toco de lápis. Quando ele morreu, em 2006, deixou uma produção suficiente para os próximos três anos.

Nessas reuniões, a família discute abrir uma empresa apenas para que possam comercializar o estoque de cachaça que fica em sua casa. Enquanto isso não acontece, presenteia amigos e parentes com garrafas.

-Tenho um estoque aqui precioso. Da nossa safra de 1996, quando o papai ainda participava dos negócios. É uma cachaça encorpadíssima. Para quem gosta, é um tesouro.

Gilberto me mostra os tóneis de cachaça de sua coleção.

-Por que um tucano? Por que esse nome de Tucaninha?

– Ah, é uma homenagem à nossa ave tropical, muito comum em nossa região. Constantemente a gente vê tucanos no Glória, porque aqui é bem comum que as pessoas tenham árvores frutíferas em seus quintais. Na casa de minha mãe mesmo, vira e mexe e tem tucano nos visitando. Lá na casa dela tem acerola, araçá-boi, pupunha… Nós tomamos suco natural e de polpa o ano todo. Uma beleza.

Ele conta as várias receitas da mãe, Fia, de sucos e doces das frutas regionais. E me convida a sentar no barzinho.

– E vamos experimentar cachaça, uai! Você faz uma entrevista dessas e não vai provar do que está falando? De jeito nenhum!

Fazemos um brinde com a cachaça da safra de 96. Com a bebida compartilhada, entre uma castanha e outra, faço a última pergunta que ele responde dando risada.

-Gilberto, você lembra qual foi a primeira vez que experimentou uma cachacinha na vida?

-Mas é claro que eu me lembro! Eu tinha 13 anos, peguei uma do meu pai e experimentei. Mas apreciar, de verdade, foi aos 25 anos. Uma coisa que aprendi com o tempo.

E é em tom de conversa de boteco, termino a entrevista com Gilberto. Apreciando uma cachaça. Porque apreciar é muito melhor do que, simplesmente, beber. É de gole em gole que o mineiro enche o papo.

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