Algumas ideias para um Terroir na Cachaça

  • Publicado 12 anos atrás

Renato Figueiredo explica o conceito de Terroir e discute sua possível – e polêmica – aplicação para o universo da Cachaça

Terroir: para quem não sabe, esta palavra que não tem nada a ver com “terror”, mas com “terreno”, indica a interferência das qualidades únicas de um local para a produção do vinho. Qualidade do solo, incidência de raios solares, umidade, chuvas durante o ano: uma série de fatores interferem no complexo conceito de terroir. Dentre os especialistas degustadores da bebida, alguns afirmam  até conseguir sentir o terroir de um vinho. Exagero? Não sei. Deixo a pergunta para os especialistas naquela bebida. O que eu vou discutir aqui, continuando a discussão da semana passada (neste post), é como devemos lidar com este conceito para o caso da Cachaça.

Como falei antes, tudo começou quando a tradicional produção francesa do vinho começou a ser ameaçada pela produção de novas regiões, principalmente na Califórnia (EUA). O chamado “Novo Mundo” do vinho ameaçava a produção francesa com grande escala e elevada qualidade. Quando, num teste cego, um grande crítico de vinho comparou um grande vinho francês a um vinho californiano, a coisa “ficou feia” para os europeus. Para defender sua produção, os franceses começaram a valorizar o fato de que os vinhos produzidos em suas terras, além de contarem com séculos de história e tradição, tinham características diferentes devido a sua localização geográfica, condições climáticas e características do solo. E eles não estavam errados. O mesmo acontece no café, no qual a qualidade do solo e clima influencia muito na qualidade do grão. Mesmo algumas iguarias, como certos tipos de trufas (“cogumelos”) ou ervas só podem ser encontradas em determinadas condições geográficas (algumas, dizem por aí, não podem nem ser cultivadas pelo homem, e dependem da reprodução selvagem – é o caso das trufas negras encontradas no meio do mato com ajuda de cachorros ou outros animais farejadores).

No entanto, toda esta história do solo e das condições geográficas chegaram a um patamar um tanto exagerado. Lembro de ter visto uma vez num documentário (infelizmente não lembro qual, vou averiguar o título), um produtor reclamando que a propriedade ao seu lado produzia vinhos que custavam dezenas de vezes mais que o seu, e a justificativa estava na qualidade do solo. A propriedade ao lado, “por coincidência”, pertencia a um grande e poderoso grupo. No entanto, o que separava uma plantação de outra era apenas uma cerquinha num solo plano! Difícil acreditar, que, de fato, um solo tão próximo ao outro pudesse ser tão pobre. Fatos parecidos são mostrados em documentários como “Mondovino” (2006), de Jonathan Nossiter, e em livros como “Gosto e Poder (R$ 49)”, do mesmo cinegrafista, e em Wine Politics (Tyler Colman, ainda sem tradução para o português). Muita coisa “saiu” do controle e passou mais a significar “política” e estratégia do que, de fato, interferências no sabor e na qualidade do vinho.

Toda esta história que se passa com o vinho me faz repensar a aplicação da idéia de Terroir da Cachaça. Usado indiscriminadamente, corremos o risco de ouvir por aí, POR EXEMPLO, que o solo de Paraty é melhor que o de Salinas, que é melhor do que o do Sul que, por sua vez perde para o de Pernambuco… Cá entre nós, ninguém vai ganhar muito com isso, não é mesmo?! Hoje já enfrentamos algumas rixas, e acho que a Cachaça só tem a perder se investirmos cegamente neste tipo de argumento. Temos que lembrar que “Indicação Geográfica” (IG) é uma coisa diferente de Terroir. Como eu disse no último post, o estabelecimento de um selo de IG, independente das questões do solo e clima, é importante para não deixar que “espertinhos” produzam Cachaças ruins e se aproveitem do título da região para vender mais. Além disto, existem outros aspectos que fazem uma cachaça de Paraty, de Salinas, de Monte Alegre do Sul ou de qualquer outro lugar serem únicas. Para um consumidor que mal sabe reconhecer acidez ou doçura numa cachaça, falar em sentir o terroir de determinada região numa bebida é algo muito muito distante, na minha opinião. Acho que temos que usar de nossa brasilidade para focar em novas maneiras de diferenciar uma bebida de outra: maneiras mais palpáveis para o consumidor final, maneiras que possibilitem também “diferenciar” ao invés de hierarquizar as Cachaças das diferentes regiões. O solo e o clima fazem parte, sim, é claro. Mas podem ser fatores muito menos importante do que falar da história única de cada região, sua tradição, as madeiras favoritas para envelhecimento, os segredos no pé-de-cuba, as misturas mais usadas… Falar de terroir pode ser a estratégia mais “fácil” e publicitária. Mas acho que temos como fugir disto hoje e trabalhar em prol da Cachaça Brasileira, e não da cachaça da região x, y ou z.

Mas o debate não acabou. Fico aberto para ouvir sua opinião. Fique a vontade para deixá-la aqui, ou mandar no email [email protected]

 

 

Foto: usuário do flickr Luciano.silva, usada aqui sob licença Creative Commons.

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